A “guerra dos bombeiros”: paz aos homens de boa vontade
Este conflito deveria ter sido evitado. Até porque as propostas governamentais, ainda podem (e devem) ser discutidas em sede própria, como quaisquer propostas governamentais noutros domínios públicos.
"Em caso que algum fogo levantasse, o que Deus não queira, que todos os carpinteiros e calafates venham aquele lugar, cada um com o seu machado, para haverem de atalho o dito fogo". Esta citação da Carta Régia de 23/8/1395, da autoria do rei D. João I, vem aqui a propósito do recente conflito entre o Governo e a Direcção da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP).
Muito empolado por posições e acções dos inerentes responsáveis e pelo tratamento de uma comunicação social que busca o sensacionalismo e o “sangue” para os (tele)vender como uma “guerra” entre os bombeiros e o Governo (ou, até mais, vice-versa), este conflito subiu, em escala, na crispação de palavras e actos [1], Ainda que tão sinteticamente quanto possível, convém, talvez, reflectir a situação, até porque, dado o seu condicionalismo histórico, cultural, institucional e social, é mais complexa do que parece.
E, por isso, requereria serenidade e ponderação (e não crispação e precipitação) nas posições, qualificadas e decisórias, que têm sido assumidas. Como decorre daquela citação, a formação de corpos de bombeiros voluntários (ainda que não, evidentemente, com esta designação) já remonta ao século XIV. Ainda que com meios e organização arcaica, foi uma forma comunitária de as populações, com a entreajuda entre vizinhos e assentando no voluntariado e no comunitarismo, se defenderem das consequências do flagelo dos incêndios.
Não se tendo a veleidade de pretender fazer aqui qualquer resenha histórica e normativa de 600 anos de bombeiros voluntários em Portugal [2], para o que aqui se visa, interessa frisar que, sobretudo a partir do século XIX, e mormente desde os anos trinta do século passado, evoluiu um enquadramento mais formal, institucional e mesmo legislativo (e, necessariamente, administrativo e político) dos bombeiros voluntários.
Assim, da constituição da Liga dos Bombeiros Portugueses (1930) [3], passando pela criação do Serviço Nacional de Bombeiros (1979), da Escola Nacional de Bombeiros (199 /1995), do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil (2003), chegou-se, com os bombeiros voluntários em posição determinante na protecção civil (e muito especialmente quanto aos “fogos florestais”) e com uma organização operacional e associativa já bastante enraizada institucionalmente e nas comunidades (sobretudo ao nível municipal, até porque, em regra, foi essa a organização territorial da sua génese associativa), à reforma alargada e integrada da protecção civil, em 2007.
Portanto, basicamente, tem uma dúzia de anos o actual sistema de protecção civil, com a criação de uma Lei de Bases da Protecção Civil [4] e legislação tutelar conexa, designadamente, para além de outra [5], a que criou a Autoridade Nacional de Protecção Civil, a qual, com a missão de “planear, coordenar e executar a política de protecção civil...” [6], substituiu o referido Serviço Nacional de Protecção Civil, de 2003.
Neste “pacote” legislativo de reforma da Protecção Civil, de 2007, couberam, nesse ano e nos seguintes, outros diplomas já mais estruturantes [7], dos quais interessa destacar o regime Jurídico dos Corpos de Bombeiros CB) [8] e o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários (AHBV), detentoras dos respectivos CB.
Este último regime jurídico define as AHBV como entidades de direito privado, mais especificamente, como “pessoas colectivas (associações) sem fins lucrativos, reconhecidas desde a sua constituição como de utilidade pública e administrativa” “que têm como escopo principal a protecção de pessoas e bens” [9].
Há muito tempo que se mantêm, latentes ou recorrentes, velhos problemas (de ordem social, estatutária, financeira, fiscal, administrativa, qualificativa, técnica, etc.) relacionados com a manutenção e gestão das AHBV (e, necessariamente, dos CB que detêm) e com as condições de acção e sociais dos bombeiros voluntários.
Mas o conflito agora por aí divulgado publicamente como a tal “guerra dos bombeiros” e que, mais propriamente, é um confronto entre a Direcção da Liga de Bombeiros Portugueses e o Governo, emerge de propostas legislativas do Governo apresentadas em 25/10/2018 no Conselho de Ministros, se bem que estas propostas governamentais, porque não aprovados na sua versão final, ainda estão em discussão pública.
Nestas propostas de diplomas, o Governo evidencia a intenção de, em síntese, conferir mais profissionalização e mais descentralização (integrada ao nível intermunicipal) ao sistema de Protecção Civil. Alterando, assim, quanto a aspectos de de reorganização territorial [10] e de conexão de competências institucionais e administrativas, o referido “pacote” da Protecção Civil de 2007 e, necessariamente, algo na organização e prática concreta, no terreno, que ele induziu até agora.
A Direcção da LBP, tendo por referência maior autonomia das AHBV e CB, faz uma projecção negativa destas presumidas alterações, quer do ponto de vista estatutário, quer operacional [11]. Logo, também, do ponto de vista de Protecção Civil em geral. A situação (e, sobretudo, o seu “ponto”) não é tão linear como parece...
Não obstante, entretanto, haja que ter em conta a interveniência de outros agentes de protecção civil já existentes ou posteriormente criados [12], é um facto que, em Portugal, o sistema de protecção civil tem assentado muito (seguramente, em mais de 90%), no voluntariado, institucionalmente nas AHBV (cujos dirigentes também são todos voluntários, não remunerados) e, operacionalmente, nos bombeiros voluntários (incluindo o respectivo quadro de comando – comandantes e respectiva cadeia hierárquica descendente – também voluntários) integrados nos CB.
E não apenas nisto, nas instituições e pessoas intervenientes, também a pesadíssima (e valiosíssima, se se quiser, caríssima, quer quanto a aquisição, quer quanto a conservação/manutenção) infra-estrutura de instalações, viaturas e equipamentos é propriedade, não do Estado mas das AHBV.
Ora, o inerente financiamento estabelecido pelo Estado [13] às AHBV / CB para garantirem as operações de protecção civil e emergência, é cada vez menos suficiente para muitas AHBV satisfazerem os custos de manutenção e gestão desta pesada infra-estrutura.
Depois, o exercício da actividade de transporte de doentes não urgentes [14], atribuída às AHBV como “compensação” da exiguidade do referido financiamento directo das actividades de protecção civil propriamente dita, é cada vez menos compensatória, sobretudo no interior, tendo em conta, para além dos meios (trabalhadores, viaturas, equipamentos, combustíveis) que requer (e que o Estado não financia), o condicionalismo demográfico, geográfico e viário.
Daí que, para muitas AHBV, isso só tem sido possível com subsídios e donativos das autarquias, de algumas (poucas) empresas e das pessoas, individualmente consideradas.
No que respeita às pessoas, a situação é especialmente perversa, visto que, neste domínio, são “massacradas” por três formas: pelas catástrofes naturais de que são vítimas, pelos impostos que pagam para que o Estado lhes garanta o direito à protecção civil nessas catástrofes e, por último, pelos peditórios dos bombeiros voluntários para que esse direito seja efectivamente garantido.
É indubitável que o poder político, e concretamente o Governo, representando o Estado, no relacionamento com as AHBV (em termos mais gerais, com “os bombeiros voluntários”), ou seja com um sistema privado que tem um papel muito importante na prossecução de um serviço público que ao Estado compete, não pode deixar de ter em conta o que precede.
Contudo, neste relacionamento, também não pode a LBP deixar de ter em conta que a protecção civil, na medida em que se consubstancia em garantir o direito à protecção, para já não dizer dos haveres, da vida, da saúde, da integridade física e da saúde das pessoas (individualmente e integradas em sociedade), é, como a Defesa, a Segurança Pública, a Justiça, a Segurança Social, a Educação, a Saúde, no sentido constitucional (CRP), um "direito fundamental".
Logo, sendo responsabilidade e obrigação do Estado garantir a protecção civil das pessoas (como individualmente e nas suas comunidades) a atribuição desta responsabilidade ao Estado implica a consequente legitimidade da exigência dos cidadãos, da sociedade, de que o Estado (executivamente, o Governo), efectivamente a assuma e satisfaça em concreto, directa ou indirectamente,
Mas implica também, necessariamente, reconhecer ao Estado o poder (que é um serviço) político e administrativo do Estado quanto à tutela das instituições e agentes envolvidos, designadamente, no sentido de se admitir a competência e a autoridade ao Estado para a inerente definição estratégica, institucional e organizacional da Protecção Civil.
Do ponto de vista de qualquer cidadão, o que interessa acentuar é que, ponderado o condicionalismo actual, a Protecção Civil é (está) um domínio complexo. Por isso, e sobretudo porque não têm dimensão os valores e responsabilidades (humanos, sociais, económicos, institucionais, políticos...), individuais e colectivos, em causa, este conflito deveria ter sido evitado. Até porque as propostas governamentais, ainda podem (e devem) ser discutidas em sede própria, como quaisquer propostas governamentais noutros domínios públicos.
De qualquer forma, tendo-se desencadeado com a projecção pública que teve, já era mais do que tempo de, em vez de ser agudizado (“ateado”) com posições (palavras, textos e actos) crispadas, desproporcionadas e precipitadas, ser serenado e resolvido com ponderação, moderação e diálogo útil e consequente.
Sob pena de os posicionamentos assumidos induzirem (como já se nota que induzem), não só serem contraproducentes à sua resolução numa perspectiva de interesse público como, publicamente darem uma ideia mais de doentio conflito de poderes pelo poder do que saudável conflito por um (melhor) serviço público, o de Protecção Civil. Ora, (ainda) não é essa ponderação, moderação e diálogo consequente e útil, que “vemos, ouvimos e lemos”. O que “não podemos ignorar”.
“Não podemos ignorar”, mais especificamente pelo que precede. E, mais em geral, porque, a prolongar-se (e, pior, a agravar-se) nestes termos que se têm verificado, os maiores prejudicados, num contexto de prejuízo em geral para a Protecção Civil, são os bombeiros voluntários, os associados e dirigentes das AHBV e, sobretudo, as pessoas. As pessoas em geral, como tal, como cidadãos e até como contribuintes. As pessoas, que são o essencial objecto (e objectivo) da missão (e acção) da Protecção Civil.
Sendo em particular aos bombeiros, aos “soldados da paz”, que publicamente é mais associada é a (tal) “guerra” escrita em letras garrafais nos rodapés dos plasmas dos aparelhos televisivos e nas primeiras páginas de certos jornais, dada a quadra que atravessamos, é caso para, sem ironia, se clamar: “menos achas para a fogueira”, “paz aos homens de boa vontade”.
Nota: Este texto reflecte apenas, estritamente, a opinião pessoal do autor.
[1] Para além de duas concentrações de bombeiros promovidas pela Direcção da LBP, também por orientação desta, a não comunicação aos CDOS (ANPC) do distrito, por parte das AHBV/CB, a informação operacional relacionada com ocorrências e intervenções de emergência, ainda que sem prejuízo da prestação atempada e adequada do respectivo socorro.
[2] Muito há escrito sobre isso, inclusive com sustentação académica e, mesmo, como suporte científico.
[3] Entidade de direito privado e de confederação associativa, que tem como sócias directas as AHBV, se bem que estas também sejam associadas directas das federações distritais de bombeiros com intervenção mais directa na constituição e funcionamento da LBP.
[4] Lei N.º 27/2006, de 3 de Julho
[5] Por exemplo, a Lei 65/2007, de 12 de Novembro, que instituiu o enquadramentos institucional e operacional da Protecção Civil no âmbito municipal e o Decreto-Lei 134/2006, de 25 de Julho, que instituiu um “sistema integrado de operações de protecção e socorro (SIOPS)”
[6] Decreto-Lei 75/2007, de 29 de Março
[7] Entre os quais os relacionados com o Regime Jurídico dos Bombeiros, o Regulamento Disciplinar dos Bombeiros, o Recenseamento Nacional de Bombeiros, a constituição de Equipas de Intervenção Permanente (EIP), o Programa Permanente de Cooperação com as AHBV, etc.
[8] Decreto-Lei 247/2007, de 27 de Junho
[9] Lei 32/2007, de 13 de Agosto
[10] Um dos aspectos mais contestados pela LBP é o de a divisão regional da Protecção Civil passar a ter por critério as Comunidades Intermunicipais (CIM) e não o distrito (sob a superintendência dos Comandos Distritais de Operação e Socorro–CDOS), como, até agora, se tem verificado.
[11] Por exemplo, além de outras, as implicações operacionais decorrentes das alterações na organização territorial da Protecção Civil e nas relações de competências e poderes nas intervenções operacionais (por exemplo, em fogos rurais) entre os bombeiros voluntários e outros agentes profissionais de protecção civil, nomeadamente, a Força Especial de Bombeiros (FEB) e a GNR.
[12] INEM, GNR, Força Especial de Bombeiros, Bombeiros Sapadores Municipais, etc
[13] Lei 94/2015, de 13 de Agosto
[14] Regulado por legislação específica – DL 38/92 de 28/3 e Portaria 260/2014, de 15/12 –, só tem como contrapartida a facturação do transporte de doentes ao SNS, às unidades de saúde e a particulares.