50 anos a ligar quem veio antes a quem virá depois

Em comemoração do 50º aniversário que se celebra em 2019, a ECM reúne, numa edição de luxo, 18 CD do obrigatório Art Ensemble of Chicago e de projectos dos seus membros. Um olhar para o passado de um grupo que quis sempre caminhar para o futuro.

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Uma luxuosa caixa comemora o trajecto de uma das formações mais vitais do jazz contemporâneo: 18 CD da história da banda e vários projectos dos seus membros, acrescidos de um generoso livro que documenta o trabalho gráfico e reúne vários depoimentos Roberto Masotti/EMC Records

“O Art Ensemble of Chicago e a ECM Records ambos celebram o seu 50º aniversário em 2019. Tem sido extraordinário partilharmos juntos esta viagem.” As palavras do saxofonista Roscoe Mitchell dão as boas-vindas à luxuosa caixa com que a editora alemã comemora o trajecto de uma das formações mais vitais à história do jazz contemporâneo. Mesmo que a celebração tenha sido antecipada uns meses para capitalizar as vendas natalícias (mais generosas para um objecto como este, composto por 18 CD da história da banda e de vários projectos dos seus membros, acrescidos de um generoso livro que documenta o trabalho gráfico e reúne vários depoimentos), é impossível não curvar os lábios num sorriso que reconhece na curta mensagem de Mitchell a história de um colectivo que sempre baralhou as coordenadas temporais.

E baralhou-as de acordo com um lema que proclamava: “great black music, ancient to the future”. Em conversa telefónica com o Ípsilon, Roscoe Mitchell, 78 anos, confirma esse motor para a actividade do Art Ensemble of Chicago (AEC): “Isso significava que ligávamos a música que viera antes de nós àquela que viria depois de nós. Era isso que nos interessava fazer.” Daí que, desde a edição de Tutankhamun, em 1969, se tenha tornado um cliché dizer que a bordo do AEC o futuro era antecipado. Como se o futuro, lá à frente, fosse puxado até esbarrar com estrondo no presente, eliminando o caminho necessário para chegar de um a outro. Daí que, uma vez mais, trazer o 50º aniversário para o ano que precede matemática e oficialmente as comemorações possa entender-se como apenas mais uma maneira de nos lembrarmos de que amanhã sempre foi longe de mais para esta gente.

A história oficial do AEC começa em 1969, com uma viagem a Paris que, num só movimento, matou o Roscoe Mitchell Sextet e deu à luz o novo colectivo. Foi uma questão de justiça. O sexteto juntou-se para a primeira gravação capitaneada por Mitchell logo após conhecer e reconhecer um espelho de brilhantismo no trompetista Lester Bowie. A fortíssima ligação entre os dois havia de germinar a partir desse primeiro álbum de Mitchell, Sound (1966), que reunia já as participações, entre outros, de Bowie e Malachi Favors (contrabaixo), três dos quatro fundadores do AEC. Foram estes, acrescidos do também saxofonista Joseph Jarman (que, em 1967, integrara já o Roscoe Mitchell Art Ensemble), que se enfiaram num avião a caminho de Paris. “Na altura”, diz Roscoe ao Ípsilon, “ensaiávamos cinco dias por semana, das 9 às 5. Estávamos juntos como uma família. Aliás, o Lester Bowie vendeu todos os seus pertences para podermos levar a banda para a Europa em 69.”

Foi esse espírito colectivo, na verdade, a determinar a mudança da designação para aquela que ficou gravada a ouro na História do jazz. “Toda a gente estava a dar ao grupo 100% do seu tempo e do seu empenho”, recorda o saxofonista. “E foi então que decidimos tornar-nos um grupo cooperativo.” A férrea disciplina que então aplicavam aos ensaios reflectia a certeza do som que pretendiam explorar e desenvolver. “Tínhamos uma ideia clara de que queríamos fazer algo particular e por isso é que trabalhávamos de tanto e de forma tão árdua”, diz o músico. “Queríamos dedicar-nos à imparável perseguição da música – que ainda não terminou, ainda a continuamos.”

Na fase parisiense, que inclui uma temporada de um mês no Théâtre Lucernaire, em Montparnasse, os quatro põem em prática essa visão muito particular de aliar o free jazz à música escrita contemporânea, atravessada ainda por todo o tipo de detritos de músicas africanas e com recurso a uma miríade de instrumentos – só nessa primeira digressão europeia diz-se que terão sido utilizadas cinco centenas. O largo escopo da sua visão musical havia de ficar também registado ao acompanharem a cantora Brigitte Fontaine e o percussionista Areski Belkacem no álbum Comme à la Radio.

De ouvidos no futuro

A liderança de Roscoe Mitchell dissolve-se na prática mas também na nova designação do grupo, ao mesmo tempo que a cidade de Chicago é atirada para a linha da frente nessa estada em Paris. E é justo que assim seja, porque o AEC é um produto muito concreto da comunidade de músicos que se foi juntando em torno da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), organização nascida a partir da Experimental Band do pianista Muhal Richard Abrams, cujo propósito era já o de encontrar um ponto de tangência entre a música escrita e o jazz vanguardista.

A AACM, fundada em Chicago em 1962, tornou-se então um ponto de encontro obrigatório para músicos históricos como Abrams, Anthony Braxton, Jack DeJohnette ou Henry Threadgill colocarem em prática uma exploração das suas ideias musicais, incentivando os músicos de jazz locais a descobrirem ali a sua voz e a não negociarem a sua originalidade. “Aquilo que fizemos foi olharmos bem para a música que existia à nossa volta, para a música de alguns dos nossos grandes mestres e que não queríamos para nós – porque queríamos controlar melhor os nossos destinos”, explica-nos Roscoe Mitchell. Tomeka Reid, violoncelista chamada pelo saxofonista para a actual formação do AEC, aproximou-se do saxofonista igualmente através da sua entrada para a AACM, levada pela mão da flautista Nicole Mitchell. “Senti-me logo atraída por ideais como manifestarmos a nossa vida através da música, montarmos os nossos concertos, encontrarmos a nossa voz, formarmos os nossos grupos e sermos autodeterminados”, explica ao Ípsilon.

Essa busca incondicional por uma voz própria e ilimitada seria defendida por todos quantos gravit(av)am em torno da AACM, mas teve no Art Ensemble of Chicago a sua expressão colectiva mais consistente. Tal consistência ganhou uma densidade maior e imediata com a integração, em 1970, do percussionista Famoudou Don Moye, descoberto no lendário período parisiense, passando o AEC a fixar-se enquanto quinteto. É essa formação que a História recordará e que foi sendo registada por uma série de editoras ávidas de se associar a uma música de enorme porosidade estilística e desejo de expansão permanente.

Steve Lake, da ECM, escreve no livro que acompanha a caixa The Art Ensemble of Chicago and Associated Ensembles que os sets do AEC dessa fase podiam consistir em “meditações ancestrais salpicadas pelo som de gongos e arriscadas improvisações colectivas, vibrantes coros percussivos, marchas paródicas, pós-bop incendiário, silêncios vertiginosos, paráfrases clássicas, invocações de orações, vestígios de blues de Chicago, country blues e velhas canções folk, funk rústico e colagens sonoras radicalmente urbanas com impacientes campainhas de bicicleta e sirenes”, tudo a sublinhar o tal lema de viagem do passado para o futuro que Malachi Favors anexou ao slogan Great Black Music.

É tudo isto, num avançado estádio de evolução, que encontramos no primeiro dos álbuns que o AEC gravou para a editora alemã. Nice Guys (1979) é um perfeito exemplar do depuramento que a música do grupo alcançou. Foi o disco com que o pianista Craig Taborn descobriu o AEC, de acordo com o texto que se lê na edição comemorativa, dizendo-se maravilhado com a revelação, aos 12 anos, de que “o propósito de um ensemble tanto poderia ser contorcer-se até desaparecer numa paisagem quanto saltar de dentro de uma”. É essa dinâmica dificilmente replicável de uma colectivo em que as vozes individuais têm direito a espaço próprio que é quase palpável em Nice Guys, mas também em Full Force, Urban Bushmen e The Third Decade, os álbuns que compõem o conteúdo inicial desta edição e que documentam a soberba primeira metade da década de 1980 na vida do AEC – junta-se-lhes Tribute to Lester (2003) e um espantoso conjunto de álbuns de Mitchell, Bowie, DeJohnette, Evan Parker e Leo Smith

Esses registos iniciais exploram de forma lapidar a relação com o silêncio que sempre foi uma das marcas mais notáveis na música do AEC. “Isso veio do meu álbum Sound”, argumenta Roscoe Mitchell na conversa com o Ípsilon. “Sou um estudioso dos opostos – se há silêncio, há ruído; se há suavidade, há explosão. E claro que é preciso estudarmos esses opostos para termos uma percepção clara daquilo que acontece no meio.” O compromisso com o estudo é algo que Mitchell nunca deixou cair e que mantém presente na vida actual do AEC. Mesmo após a morte de Lester Bowie, em 1999, e de Malachi Favors, em 2004, o saxofonista continuou sempre a empurrar o grupo na direcção do futuro, respeitando o pacto de sangue que garante que “mesmo se o AEC se limitar a ser uma pessoa, então será essa pessoa o AEC”.

Tomeka Reid, que integra a mais recente formação do AEC, encontrou-se um par de vezes com Roscoe Mitchell em 2008 e 2009. Em 2014, numa passagem pela Califórnia com o seu trio de cordas The Here and Now, puxou os outros dois pelo braço para irem procurar o saxofonista na Mills College. “Fomos ter com ele, oferecemos-lhe o nosso CD, levámo-lo a almoçar, falámos sobre música e passámos algum tempo juntos”, recorda. Passado um ano, Roscoe chamou-a para se juntar a Junius Paul, Vincent Davis e ele próprio num quarteto que homenagearia o saxofonista Fred Anderson. A experiência foi tão impressionante que Roscoe chamou o Here and Now para integrar a formação alargada que leva agora para a estrada o espectáculo de aniversário, mas convocou também Reid para a versão em sexteto que hoje responde pelo nome AEC e se apresenta ao lado de Mitchell e de Don Moye.

De cada vez que sobe a palco com o AEC, admite Tomeka, não se esquece do legado que carrega consigo. Mas sabe também que os olhos e os ouvidos de Roscoe Mitchell estão ocupados em perscrutar o futuro. E é por isso que, mesmo no 50º aniversário, o AEC não se apresenta em concerto recuperando o reportório antigo. Para isso, existem os discos. Não dá para reclamar liberdade e exploração sem ter o desconhecido por destino.

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