A greve indolor, pérfida e perigosa
Entre muitas coisas inaceitáveis nesta greve, sobra essa ideia pérfida de haver quem dê dinheiro aos enfermeiros para que cidadãos indefesos não façam a cirurgia a que têm direito.
Jerónimo de Sousa disse por estes dias que “um trabalhador nunca vai com um sorriso nos lábios para uma greve”, mas esses tempos épicos e sisudos das grandes lutas operárias morreram a golpes de crowdfunding. Os enfermeiros podem dar-se ao luxo de alimentar a sua “greve cirúrgica” por tempo indeterminado e conservar o sorriso nos lábios porque alguém parece disposto a pagar com donativos as perdas salariais resultantes das faltas ao trabalho. Na luta feroz que paralisa os blocos operatórios dos principais hospitais públicos do país criou-se assim um fenómeno temível para o poder político e terrível para o interesse dos cidadãos: lutar sabendo que não se perde nada, ficar em casa com a noção de que só se pode ganhar, deixa de ser a “Batalha Incerta” retratada no livro de John Steinbeck e transforma-se num conflito soez.
Financiar greves com donativos não é apenas uma “subversão do direito à greve” e do que está “na génese desse direito”, como notou Jerónimo de Sousa. É a mercantilização dos direitos laborais que abre portas desconhecidas. Um dia, arriscamo-nos a ver hospitais privados a financiarem via crowdfunding greves nos hospitais públicos, portos galegos a pagar por paralisações em Aveiro ou Leixões, a têxtil da rua de cima a dar dinheiro a grevistas da têxtil da rua de baixo. Não está em causa a legalidade do processo e, no caso em questão, qualquer juízo de valor sobre a justeza da luta dos enfermeiros – sem dúvida mal pagos para as suas competências, decerto maltratados pelo esquecimento do poder político. Está em causa sim a quebra na proporcionalidade entre os esforços nulos dos grevistas e as perdas imensas de todos nós.
É aliás no poder dos enfermeiros para prolongar sem dramas a sua luta que está a questão essencial. Porque, sejamos realistas, se "ninguém pode morrer pelo exercício do direito à greve", como disse o primeiro-ministro, no actual estado da situação é provável que morra gente sem que os enfermeiros cedam nem o Governo actue. Negociar será sempre o melhor remédio, mas não se aceita que uma greve inodora e indolor como esta se prolongue com donativos. Ou há um acordo rápido e justo, ou o Governo tem de avançar para a requisição civil. Porque, entre muitas coisas inaceitáveis nesta greve, sobra essa ideia pérfida de haver quem dê dinheiro aos enfermeiros para que cidadãos indefesos não façam a cirurgia a que têm direito.