Macron, o “populista chique”
Desde há um mês que o caráter massivo, plural e incontrolável dos coletes amarelos descalçou completamente o discurso reformista de Macron.
O Júpiter que “acreditou ser ‘o Eleito’ dos franceses e o salvador do mundo contra o populismo” (na síntese de um antigo dirigente socialista que foi colaborador de Macron, Libération, 8.12.2018) bateu os recordes de Sarkozy e de Hollande e tornou-se rapidamente no mais impopular dos presidentes franceses dos últimos 60 anos. Era bom tirarmos lições do rápido processo de degradação política em que caiu o mais monárquico dos presidentes da V República desde De Gaulle, que deixou embevecidos os liberais do nosso burgo (e de vários outros) com aquilo a que já se chamou um “populismo chique”, de jovem rico e promissor que, depois de apaparicado pelo poder económico e político, se apresenta como o líder desempoeirado que se oferece ao povo como seu representante direto, sem intermediários (partidos, movimentos). Inventando a plataforma En Marche com as iniciais do seu nome (EM), Emmanuel Macron concebeu o seu partido como uma verdadeira empresa, muito semelhante à Forza Italia de Berlusconi dos anos 90, aberta a fãs da sua personagem, mais do que a partidários de um programa.
Balão cheio de pouco mais que pouca coisa, Macron é um daqueles casos de governante amado fora e detestado dentro do seu país. Convencido de que “a política é mística” e desvalorizando os programas eleitorais (Journal du Dimanche, 17.2.2017), Macron pavoneia-se como europeísta cosmopolita contra os populismos (e é ver a sua política com os refugiados), ambientalista moderno contra os negacionistas do aquecimento global (e é ver o que da falta de sinceridade disse o seu demissionário ministro do Ambiente), de salvador da democracia liberal (e é ver o que da sua lei antiterrorista diz a ONU e a Amnistia Internacional). Em quatro dias de manifestações dos coletes amarelos, mandou prender 4,5 mil manifestantes e deixou 4 mil outros sob custódia policial, incluídos um grande número de estudantes. Se fosse na Venezuela, isto seria o comportamento de uma ditadura...
No ano e meio de governo, a contestação não para de crescer: depois da mobilização sindical de 2017, a ocupação de universidades no inverno e primavera passadas, desde há um mês que o caráter massivo, plural e incontrolável dos coletes amarelos descalçou completamente o discurso reformista de Macron. E ele não é caso único: ao contrário do que sucedeu durante a segunda metade do século passado, o discurso público de quem governa é hoje descaradamente próximo das suas crenças ideológicas mais íntimas, aquelas que antes, de uma forma ou doutra, se procurava disfarçar. O mesmo Macron que se lamentava à BBC, em 2015, que a França não tivesse feito as mesmas reformas que Thatcher tinha imposto aos britânicos nos anos 80, queixava-se que “os assalariados franceses ganham demais”; pelo contrário, o que era preciso é que “os jovens franceses tenham vontade de ser milionários” (Les Echos, 7.1.2015). Como ele teve.
Da mesma forma que o epicentro ideológico do governo do capitalismo global passou do “reformismo do medo” (Josep Fontana) – fazer concessões significativas às classes populares para impedir que elas quisessem derrubar o sistema -, situado algures entre uma social-democracia moderada e um reformismo que se dizia de inspiração religiosa, para um liberalismo económico desenfreado, reacionário em todas as relações sociais, também o lugar de enunciação dos governantes do século XXI tem vindo a transferir-se de uma classe média de que todos fingiam fazer parte até há 20 anos para o perfil do rico empreendedor que, quanto mais rico, mais sabedor de como fazer rico o país! O ricaço que “desce à arena” para solucionar os problemas que “os políticos” deixam por resolver foi não só Berlusconi, em Itália, ou Piñera, no Chile, ou Trump, nos EUA. Esse é o perfil de Macron, cuja identidade de classe transpira por todos os poros em cada aparição pública, quando se cruza com reformados e lhes pede que deixem de se queixar, ou quando dizia, ainda era ministro, que, “muito frequentemente, a vida de empresário é bem mais dura que a de assalariado” (BFM, 20.1.2016). Quando pretendeu, há dias, apaziguar o movimento dos coletes amarelos, percebeu que o melhor mesmo era aumentar o salário mínimo e propor às empresas que, voluntariamente e sem qualquer obrigação legal, pagassem um “prémio” no final do ano aos seus trabalhadores, livre de impostos. É absolutamente revelador que só as grandes empresas (Altice incluída) se tenham apressado a prometer fazê-lo; pelo seu lado, Macron retribuiu o favor rejeitando a pressão popular para restabelecer o imposto sobre as grandes fortunas que ele próprio revogou mal chegou ao poder.
Era, portanto, com gente desta que ia ser salva a democracia do ataque neofascista?