Transporte: de vilão a herói
A neutralidade carbónica dos transportes é tecnicamente viável, economicamente atrativa e traz imperdíveis benefícios ambientais e sociais.
Regressei da minha missão na COP24, a Conferência das Partes para as Alterações Climáticas, organizada pelas Nações Unidas em Katowice, na Polónia, e trouxe na bagagem um saco de preocupação e um baú de otimismo. Num jogo de promessas e intenções, típico dum tempo de ansiedade, vislumbro uma oportunidade, imperdível, de resolver uma fatia gorda do problema do aquecimento global até 2050. A chave está no setor dos transportes, que corre o risco de passar de problema a solução.
Quando me refiro à mobilidade de pessoas e ao transporte de bens, recuso surfar a onda dos que só vêm malefícios e razões para criticar. O transporte é um fator central na criação de riqueza das economias modernas, para além de um poderoso instrumento de coesão social, na medida em que permite que mais pessoas acedam a mais oportunidades. A História mostra-nos que o desenvolvimento do sistema de mobilidade permitiu que centenas de milhões de pessoas saíssem da pobreza, por via do acesso ao emprego, aos mercados, à educação, à saúde e à cultura. Não é coisa pouca! Por isso, aqueles que todos os dias trabalham para disponibilizar transporte só têm que estar orgulhosos do serviço que prestam à sociedade.
Acontece que o setor gera externalidades negativas que não podemos ignorar. Congestionamento, emissão de gases de efeito de estufa como o CO2, poluição atmosférica e ruído, insegurança rodoviária. E a procura por transporte não se vai reduzir, já que nos próximos 30 anos não menos de um bilião de pessoas se transferirão de áreas rurais para áreas urbanas.
Se nada mudar radicalmente, as atuais oito gigatoneladas anuais de CO2 emitidas pelo transporte em todo o mundo poderão duplicar até 2050. Considerando que o setor vale um quarto das emissões associadas ao consumo de energia, este seria um cenário apocalíptico. Por isso tenho dito que o transporte é, para já, o elefante na sala.
Agora, a razão do meu otimismo. Nos dias em que estive na COP, atuando também na qualidade de chairman da Transport Decarbonisation Alliance (TDA), tive ocasião de participar em sessões de trabalho com a presença do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e da comissária europeia para a Mobilidade, Violeta Bulc, em que apresentei três mensagens centrais para a descarbonização do sistema de mobilidade à escala global até 2050.
A primeira ideia que defendi é a de que existe atualmente momentum político, que importa aproveitar. Os líderes internacionais começaram finalmente a reconhecer a necessidade de trazer à solução os atores subnacionais, como as regiões e as cidades, e os não governamentais, como as empresas e a sociedade civil. Justamente por esta razão, Portugal foi, no início do ano, co-fundador da TDA, uma aliança que junta países, cidades e empresas líderes que ambicionam acelerar o processo de descarbonização dos transportes. Sem ação coordenada, as possibilidades de sucesso neste desafio são poucas ou nenhumas.
A minha segunda mensagem foi a de que, considerando as tecnologias hoje disponíveis ou em vias de chegar ao terreno, mais os novos modelos que induzem alterações comportamentais, é seguro dizer que existe um stock de soluções que será suficiente para viabilizar a descarbonização profunda do sistema de mobilidade. A neutralidade carbónica no setor conseguir-se-á pela aplicação do potencial da digitalização, da partilha, da eletrificação, dos biocombustíveis e do hidrogénio, ferramentas que já hoje permitem o desenvolvimento de soluções do tipo “mobility as a service”, que promovem a racionalização modal, penalizando os modos e motorizações menos sustentáveis e facilitando a transferência de viagens para modos mais sustentáveis como o transporte público e a bicicleta. As mesmas ferramentas têm igualmente aplicação no transporte de mercadorias, quer na longa distância, quer na logística urbana, áreas de que pouco se fala, mas que contam muito. Veja-se, por exemplo, o impacto da atividade de entregas ao domicílio que resulta do crescimento do e-commerce.
Na minha análise, no mundo desenvolvido não se antecipam razões para que a descarbonização do transporte não aconteça até 2050. Existe momentum, existem soluções, existem recursos. Já no resto do planeta, que por acaso é a sua maioria, exigem-se cautelas especiais para que o processo não entre em divergência, o que me conduz à minha terceira mensagem na COP.
As cautelas a que me refiro destinam-se a evitar que se repitam os erros do passado. A procura por transporte no mundo em desenvolvimento vai continuar a crescer exponencialmente, com grande expressão na Ásia, em África e na América do Sul. O pior que poderia acontecer era o mundo rico começar a colocar no mundo pobre as suas soluções poluentes de transporte, caindo na tentação de esticar a vida de tecnologias esgotadas e já mais que pagas, na tentativa de prolongar a curva de receitas sem ter de suportar os custos das externalidades.
A solução para este risco chama-se “leapfrogging”, que é a forma de algumas regiões do globo menos desenvolvidas saltarem de uma só vez uma ou duas gerações de tecnologia, atalhando caminho no seu percurso de investimento infraestrutural.
Para que a resposta à procura de transporte naqueles países seja de raiz descarbonizada, impõe-se o leapfrogging nas comunicações e tecnologias digitais, na energia e nos veículos. No primeiro caso, a generalização das comunicações móveis é já uma realidade que permitirá a implementação de modelos de transporte flexível e partilhado, como os que conectam procura e oferta em tempo real. No caso da energia, a oportunidade reside na extraordinária redução dos custos de produção de eletricidade limpa a partir do sol e do vento, que, associada aos avanços esperados no armazenamento, viabilizará redes descarbonizadas e distribuídas. Por fim, o leapfrogging nos veículos, em que a ênfase estará nos elétricos, incluindo os de duas rodas, e no hidrogénio para o transporte de longa distância.
A dimensão do financiamento deve ter aqui um papel quase prescritivo. Os 100 biliões de dólares anuais prometidos pela comunidade dos países ricos para, a partir de 2020, financiar a ação climática nos países mais pobres, no quadro do Acordo de Paris, são uma oportunidade única de elevar a ambição, exigindo-se o leapfrogging como condição de elegibilidade.
A neutralidade carbónica dos transportes é tecnicamente viável, economicamente atrativa e traz imperdíveis benefícios ambientais e sociais. Como? Envolvendo todos os atores, acreditando na tecnologia e não deixando para trás os menos desenvolvidos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico