Francisco de Holanda, um nome vezes dois
Francisco de Holanda e Chico Buarque têm cinco séculos a separá-los a a arte a uni-los.
Por extraordinário acaso, coincidiram na agenda de Novembro, em Portugal, dois Franciscos de Holanda, e ambos por via das letras. Enquanto nas instalações da Biblioteca Nacional, em Lisboa, era inaugurada a exposição Sob a chama da candeia, Francisco de Holanda e os seus livros (exposição que ali permanece até 19 de Fevereiro de 2019, com entrada livre), chegava às lojas a primeira edição portuguesa do livro Tantas Palavras, de outro Francisco de Hollanda (este com L dobrado), que o mundo conhece apenas por Chico Buarque. Um português e outro brasileiro, um nascido há cinco séculos (viveu de 1518 a 1584) e outro em meados do século XX (em 1944), são, cada qual na sua época, vanguardistas no seu meio. O primeiro muitas vezes esquecido, o segundo celebrizado devido às artes da canção popular.
Como conhecê-los melhor? No caso de Francisco de Holanda, nascido em Lisboa, onde morreu aos 66 anos, a exposição da Biblioteca Nacional (BN) dá algumas preciosas pistas, ainda que num espaço um tanto exíguo: através de livros que ele possuiu ou leu (a BN tem três exemplares, ali expostos, anotados pela sua própria mão) mostra-se o seu percurso nas artes, primeiro como aprendiz de iluminador na oficina do seu pai, António de Holanda, aí ganhando (até 1537) o fascínio pelas iluminuras, que veio a considerar a primeira das artes do Desenho, uma arte celestial e angélica como que “soprada por Deus”. Educado na corte de D. João III, em Évora, de 1534 a 1537, germinou nele aí um desejo que descreveria mais tarde: “Eu fui o primeiro que n’este Reino louvei e apregoei ser perfeita a Antiguidade […] e o conhecer isto me fez desejar ir ver Roma.” E viajou até Roma, de 1538 a 1540, integrando a embaixada de D. Pedro de Mascarenhas, e nessa viagem “conseguiu ingressar no cenáculo da marquesa Vittoria Colonna e de Miguel Ângelo”, conhecendo ali os maiores artistas da época. No regresso, escreveu os tratados Da Pintura Antigua (1548, não publicado em vida) e Do Tirar Polo Natural (1549, o primeiro tratado europeu sobre o retrato). De Roma trazia vários desenhos que ali fizera, recolhidos mais tarde no livro das Antigualhas, e, enquanto no reinado de D. João III (1521-1557) desenvolvia “as tarefas próprias de um artista da corte (retratos, desenhos para armas de parada e festas)”, dando mais tarde origem ao seu livro Da Ciência do Desenho (1571), desenhava já, a partir de 1545, as imagens da Semana da criação do mundo até ao Dilúvio (1545-1551), início do portentoso Livro das Idades do Mundo (De Aettatibus Mundi Imagines), só descoberto em 1953, e do qual na exposição se exibe uma cópia fac-similada e várias imagens dele extraídas. “A Santa Pintura é huma candea, huma lux que inesperadamente num lugar escuro mostra obras que antes não eram conhecidas”, escreveu Holanda em “Que cousa he Pintura”, no livro Da Pintura Antigua.
Pois é todo este percurso, reconstituído através de livros da época, que se recorda na exposição em Lisboa, onde Francisco de Holanda é apresentado como um dos principais representantes do Renascimento português, “emergente na idade dos Descobrimentos”, a par de Luís Vaz de Camões, D. João de Castro, Pedro Nunes, Garcia de Orta ou D. João de Barros. A última visita guiada de 2018, pela comissária Sylvie Deswarte-Rosa, é esta quinta-feira, às 17h30.
Já o segundo Francisco, bem mais popularizado, tem em Tantas Palavras a reunião de todas as letras das suas canções, antecedidas por uma “reportagem biográfica” assinada por Humberto Werneck. Na verdade, trata-se da primeira edição portuguesa, pela Companhia das Letras, de Chico Buarque Letra e Música (esta em dois volumes, o segundo só com as partituras), que aquela editora já lançara no Brasil em 1989. O texto de Werneck é o mesmo, mas actualizado e acrescentado de um capítulo, onde se fala mais de Buarque enquanto escritor, amante da palavra e “viciado em dicionários”, mas também do Chico avô, orgulhoso da sua prole. E há as letras, todas (até agora), que vão da inicial Tem mais samba (a primeira que ele escreveu, por encomenda, em 1964) à discutida Tua Cantiga, do seu mais recente disco, Caravanas (2017). É um Francisco de Hollanda para ler, não para ouvir, mas nesta escrita está inteira a sua música.
Se os dois Franciscos se encontrassem, nalguma transversal do tempo, haviam de ter uma boa e demorada conversa.