"Um groove ou um feeling" podem ser plágio? Pharrell e Robin Thicke vão mesmo pagar direitos a Marvin Gaye
Processo arrasta-se há anos mas a decisão do tribunal californiano é final: Blurred lines tem elementos de Got to give it up. Os músicos contestam: "inspiração não é cópia".
O processo é longo e a canção orelhuda: Blurred lines, o mega-êxito de 2013 de Pharrell Williams e Robin Thicke que motivou um “momento MTV” com Miley Cyrus, vai mesmo obrigar os dois músicos a pagarem 4,3 milhões de euros de direitos de autor à família do músico Marvin Gaye. O caso pode fazer jurisprudência numa indústria que nos últimos anos se tem visto a braços com processos legais por direitos autorais e em que as fronteiras entre inspiração e autoria continuam a ser movediças.
Depois de uma primeira decisão de 2015 que dava razão à família e gestora do legado do músico norte-americano, e de um recurso interposto em 2016 pela defesa de Thicke e Williams que voltara a ser decidido, em Março deste ano, a favor dos queixosos, um novo veredicto de um tribunal da Califórnia reitera que a dupla de músicos copiou Got to give it up (1977), um tema de Marvin Gaye. O valor estipulado pelo veredicto de 2015, de 6,4 milhões de euros, foi agora reduzido pela nova e definitiva decisão do juiz John A. Kronstadt, como explica a revista norte-americana Billboard, que avançou a notícia ao final do dia de quarta-feira.
Não serão só Robin Thicke e Pharrell Williams a pagar o montante, mas também a editora de Williams, a More Water From Nazareth Publishing Inc.. O valor final (a que ainda poderão acrescer juros) resulta da soma do valor da indemnização (cerca de três milhões de euros) e dos lucros obtidos com a canção, que teve enorme exposição mediática. Não só à conta dos seus dois vídeos – uma versão com nudez e outra censurada – mas também pelas várias histórias que suscitou, desde a actuação nos MTV Awards em que a estrela pop Miley Cyrus dançou com Thicke até ao debate sobre o teor das letras e o que ele indica sobre o consentimento de uma mulher perante os avanços sexuais, da proibição da sua difusão em alguns espaços até este processo legal.
Em 2015, Pharrell, Thicke e o rapper T.I. (que também participa na canção mas não é visado no processo judicial) consideraram que a decisão já criava “um precedente terrível para a evolução da música e da criatividade”. Os dois autores admitem ser fãs de Marvin Gaye, mas Williams, prolífico produtor (a solo ou com os Neptunes) e autor de êxitos como Happy, com que recebeu o Óscar de Melhor Canção, frisou sempre que os temas apenas se assemelham no género musical, negando a existência de plágio. No recurso deste ano, os músicos defendiam que "um groove ou um feeling não podem ser alvo de direitos de autor, e [que] inspiração não é cópia.". Mas doravante a família de Marvin Gaye, ícone musical e autor de algumas das mais emblemáticas canções do século XX, receberá 50% dos royalties de autoria e edição a que Blurred lines tiver direito.
O caso Blurred lines gerou uma discussão sobre os direitos autorais e a produção musical actual, sobretudo sobre outras blurred lines – as fronteiras esbatidas entre o que é plágio e o que é autoria, nomeadamente quando o que está em causa são atmosferas ou ideias e não notas musicais ou composição pura e dura. Nos últimos anos, Bruno Mars e Mark Ronson foram processados por vários músicos por causa de outro êxito, Uptown funk, Miley Cyrus enfrenta este ano outra acção legal por We can’t stop, e Ed Sheeran já foi accionado por vários motivos, sendo um dos casos também movido pelos Gaye quanto ao seu tema Thinking out loud e suas alegadas semelhanças com Let's get it on.
Em 2015, o crítico do PÚBLICO Vítor Belanciano escrevia que o primeiro veredicto do tribunal era “uma decisão desajustada da realidade, decidida com recurso a pauta, sem ter em atenção a forma como a canção é tocada e o som da gravação, o que revela a desadequação das leis de direitos de autor quando são abordadas práticas de produção musical contemporânea, cada vez mais diversas". E acrescentava: "Parte significativa da música actual é criada em estúdio por um produtor que trabalha a partir de tecnologia, caixas de ritmo, samplers ou programas de computador, enquanto os compositores contribuem com ideias, melodias ou palavras, sem recurso a pautas ou anotações para os músicos tocarem."
Em Março deste ano, quando outro tribunal californiano avaliava o recurso dos autores de Blurred lines, a juíza Jacqueline Nguyen divergiu dos seus outros dois colegas e defendeu, como recorda a BBC, que Blurred lines e Got to give it up “diferem na melodia, na harmonia e no ritmo” e reforçou a ideia de Williams (e de parte da indústria) de que dar razão à família Gaye “desfere um golpe devastador sobre futuros músicos e compositores em todo o lado”.