O já falecido Marvin Gaye é merecidamente um dos cantores americanos mais amados da música popular, enquanto Robin Thicke deverá ser um dos mais detestados dos últimos anos.
Em parte, por isso, quando se soube esta semana que o intérprete Thicke e o compositor e produtor Pharrell Williams haviam sido condenados por um tribunal federal americano a pagar sete milhões de euros aos herdeiros de Gaye, por suposto plágio, muita gente exultou.
Em causa está o grande êxito de 2013, Blurred lines, que os herdeiros de Gaye dizem ter infringido as leis de propriedade intelectual de Got to give it up, fantástica canção soul de 1973.
Mas os grandes perdedores deste caso não são Thicke e Pharrell. A música, sim. E a criatividade em geral. É uma decisão desajustada da realidade, decidida com recurso a pauta, sem ter em atenção a forma como a canção é tocada e o som da gravação, o que revela a desadequação das leis de direitos de autor quando são abordadas práticas de produção musical contemporânea, cada vez mais diversas.
Parte significativa da música actual é criada em estúdio por um produtor que trabalha a partir de tecnologia, caixas de ritmo, samplers ou programas de computador, enquanto os compositores contribuem com ideias, melodias ou palavras, sem recurso a pautas ou anotações para os músicos tocarem.
Há um sem número de elementos – a tonalidade, a sensibilidade, a intensidade ou a textura – que as pautas musicais não captam e são esses que acabam por dar sentido a grande parte da música actual. Nada disso foi tido em conta.
A melodia, a letra ou a progressão dos acordes são distintos. Existem elementos semelhantes, mas não idênticos. Nenhum som da canção de Gaye foi transcrito, como no caso dos samples. O tempo rítmico, o falsete e as linhas de baixo são parecidas – apesar das escalas distintas – mas esses não são elementos que se possam invocar quando falamos de direitos de autor. Mais: aquele tipo de linha de baixo é omnipresente nas canções soul da época. Não é original.
A decisão baseou-se no estudo de pauta e no ambiente da canção. O que foi tido em conta não foi uma sequência de notas, mas o estilo geral das canções de Gaye. Pode-se dizer que, independentemente dos detalhes técnicos, a canção mais nova só existe por causa da antiga. Ou que a canção mais nova foi composta a partir de um modelo antigo.
Sim, é inegável que Blurred lines recorda a canção de 1973, um facto reconhecido por Pharrell que diz ser Gaye uma inspiração. Mas essa é a história da música, e da criatividade, desde sempre.
Se a sentença cria jurisprudência os herdeiros de Gaye não terão mãos a medir. Aliás nos últimos dias já se manifestaram, proclamando que o sucesso do ano passado, Happy, de Pharrell, é "bastante parecido" com outra canção de Gaye, Ain't that peculiar de 1965. Sim, claro. Tal como Kiss, de 1986, de Prince, por exemplo. Aliás Prince se quiser avançar para tribunal com queixas semelhantes terá um manancial inesgotável por onde escolher. E assim por diante, até ao infinito.
Para além de erros de avaliação específicos, na base da decisão, parece ter estado também uma visão global, muito romantizada, das noções de originalidade. Não se cria a partir do nada, mas do caos de referências que nos circunda. Uma verdade de sempre, mas com a qual nos confrontamos de forma mais patente nos tempos actuais.
Até há pouco o acesso ao passado era parcial, não cumulativo. Hoje graças à tecnologia temos a sensação que podemos aceder a todas as obras, de diferentes épocas, num ápice. Passado, presente e futuro sucedem-se, não apenas um atrás do outro, mas em simultâneo, conectando-se, de forma porosa. Influências, sempre houve. Mas hoje entram-nos pelos olhos e ouvidos adentro.
E isso cria um ecossistema ainda mais propício a equívocos, como esta decisão. Passamos o tempo a dizer que vivemos na era das reformulações, das remisturas, das reciclagens, dos revivalismos e das recriações. Nenhuma área criativa é imune à contaminação ou à omnipresença da memória. Mas isso não é plágio. É apenas a história da criatividade humana.