Um consolo para Arlindo de Carvalho
Desculpem-me o tom moralista desta história. Mas não a consegui escrever de outro modo.
Tenho de agradecer a Arlindo de Carvalho, ministro da Saúde nos dois governos de Cavaco Silva, o facto de poder — finalmente — escrever este texto. Não é ironia. Este é um agradecimento sentido.
Há 26 anos que andava à procura de uma prova sólida para confirmar uma teoria sobre a difamação e — bingo — o antigo ministro veio em meu auxílio e deu-me a resposta numa bandeja.
A tese não tem a mínima sustentação científica. Começou com um fascínio mórbido por processos de difamação na justiça e acabou na tentativa de perceber se há um padrão nas pessoas que acusam os outros de calúnia por causa de alguma coisa que lhes caiu mal.
Não estou a falar de fake news feitas com intenção maléfica, nem de esquemas diabólicos para desacreditar alguém. Em Outubro, fiquei muito contente ao ler que a jornalista finlandesa Jessikka Aro ganhou uma acção em tribunal contra um site de extrema-direita russo que ela acusara de difamação. Por causa de uma investigação sobre as “fábricas de fake news” russas, Aro recebeu ameaças de morte e foi vítima de uma campanha de difamação que durou anos.
Estou a falar das pessoas que processam os jornalistas quando não gostam das suas notícias ou das suas opiniões. Em regra, são políticos.
Durante muito tempo, a minha tese tinha uma única ideia: só os políticos que se levam muito a sério é que processam os jornalistas por difamação. Um pouco como, até ao início do século XX, os cavalheiros que se levavam muito a sério desafiavam outros cavalheiros para duelos na Rua Garrett ou na Estrada da Ameixoeira — e quem estava bem com a vida encolhia os ombros e ia ler um livro para casa.
Com os anos, a tese ganhou uma segunda ideia: só os políticos batoteiros é que processam os jornalistas por difamação.
Há honrosas excepções, mas este texto é sobre a regra. É verdade que o método é apenas empírico. Na base, porém, estão anos de prática e observação.
Esperei pelo presente de Arlindo de Carvalho quase 30 anos. Quando eu era aprendiz de jornalista, passei dois anos a escrever sobre sida aqui no PÚBLICO e todos os dias havia notícias para escrever. A sida era uma emergência nacional. Nisto, em Novembro de 1992, ouvi na TSF que um assessor técnico-científico do ministro da Saúde e membro da Comissão Nacional de Luta contra a Sida se demitira, acusando Arlindo de Carvalho de mentir. Telefonei-lhe, tomámos um café no Campo Grande e à tarde escrevi uma notícia cujo título foi: “Santos Lucas acusa ministro da Saúde de ‘desonestidade intelectual’ e demite-se.” As acusações eram de uma transparência atípica. É raro na administração pública ver esta abertura temerária, sem aparente calculismo nem prudência. Impressionou-me o homem que se demitia, João Santos Lucas, e impressionou-me Arlindo de Carvalho quando, pouco depois, me processou a mim e ao PÚBLICO por difamação. A que propósito um ministro processa um jornal porque um especialista em sida diz que ele mentiu sobre a demissão de outro especialista em sida? Dizer que era para intimidar é pouco, apesar de ser um expediente comum. Não aguentava a crítica? Tinha problemas de auto-estima? Ainda não se adaptara à liberdade de expressão da democracia? Queria esconder alguma coisa?
Não me lembrava de nada disto até ver, há dias, que Arlindo de Carvalho foi condenado a seis anos de prisão por burla qualificada e fraude fiscal, num caso saído do processo do Banco Português de Negócios (BPN), ao qual o juiz Luís Ribeiro chamou “a maior burla da história portuguesa”. Um ano depois, a juíza Maria Joana Grácio deu agora como provada a acusação de que Arlindo de Carvalho recebeu 80 milhões de euros num esquema que pretendia ajudar o BPN a escapar à supervisão do Banco de Portugal. Como outros réus, Arlindo de Carvalho teve atitudes “oportunistas, gananciosas a sem escrúpulos”.
Ontem à tarde, procurei no Facebook o contacto de João Santos Lucas. Foi a segunda vez que falámos. Ele contou-me que ficou tão perplexo com o à-vontade com que Arlindo de Carvalho “mentia, ocultava e inventava” que se pôs a estudar a mentira e até comprou o livro Lying — Moral Choice in Public and Private Life, de Sissela Bok. “Foi um acontecimento vital para a minha vida e até para a minha relação com a política. Senti que estava perante o inferno da política. Em nome do bem público, tinha de o denunciar.”
Desculpem-me o tom moralista disto tudo. Mas não o consegui escrever de outro modo.