"O sistema prisional é onde ninguém cuida de ninguém"
"O motim não foi grave. Foi uma boa oportunidade para se reflectir sobre o sistema prisional", considera o padre João Pedro Nogueira, capelão da cadeia de Lisboa. O protesto chamou a atenção para os problemas que reclusos, técnicos, educadores e guardas prisionais enfrentam todos os dias, diz.
Ao motim de terça-feira no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), controlado em pouco tempo, juntou-se um protesto nas prisões de Custóias e Santa Cruz do Bispo. Reflectem "um somatório de coisas" que não estão bem, diz o padre João Pedro Nogueira, capelão do EPL, onde esteve no dia 29 de Novembro para celebrar uma missa. As visitas do capelão para encontros com os reclusos ou eucaristias têm sido menos frequentes, como as visitas dos familiares, devido às greves dos guardas prisionais que se arrastam há meses. "Todos os que trabalham na prisão estão reclusos" num ou noutro momento.
Nessa perspectiva em que o protesto dos guardas se junta ao dos reclusos, o padre diz: "Estamos confinados a um perímetro de liberdade. Em último recurso, temos que ser criativos para que o nosso protesto – bem ou mal feito – seja escutado por aqueles para quem, nós reclusos, somos transparentes."
De que forma descreveria o Estabelecimento Prisional de Lisboa?
É um espaço de interdições. E este espaço de proibições, de interdições e de cumprimento de regras acontece num espaço fechado. Temos a passadeira estendida para que o desumano se instale. O sistema, porque é fechado, potencia todo este tipo de situações. A origem dos motins não é uma coisa só, é o somatório de muitas coisas. Existem questões de fundo dentro do sistema, e o sistema só pode ser suportado por uma boa reflexão da sociedade, que o alberga no seu seio, que o alimenta a partir dos seus impostos e deve interrogar-se sobre quais são os resultados práticos deste investimento. Alguém vai para um sistema prisional para sair pior do que entrou? Infelizmente na maioria das vezes é isso que acontece, porque o sistema falhou e todo o sistema que suporta o sistema.
Não pode resumir-se a questão à falta de recursos, de meios?
É redutor dizer que não há meios. Temos de avaliar os meios que existem e como são geridos. É uma realidade, mas a realidade não se prende só com os meios. É preciso meios humanos, sim, nos técnicos, nos guardas prisionais, no capelão, nos visitadores, nos educadores. Estes meios são fundamentais. Agora a questão é como podem eles estar ao serviço dos reclusos e das reclusas.
E não estão?
Nós temos as cadeias que a sociedade tolera, impinge ou quer. E isso é o princípio do caruncho de qualquer democracia. Uma democracia que se quer amadurecida busca o bem para todos, e nesta fatia [dos que constituem todos] faz parte o mundo da reclusão.
Como se manifesta essa falta de humanidade que referiu?
Pode ser de muitas maneiras. E resulta no olhar que o recluso tem sobre si mesmo. Ninguém pode sair ou não devia sair de um período de reclusão – seja ele de três anos, de cinco ou 22 anos – como alguém estranho. Os reclusos estão confinados a uma ala, dentro de uma ala, a uma cela, depois temos um pátio onde temos horas para ir. Isto é o perímetro da liberdade. Em último recurso temos que ser criativos para que o nosso protesto – bem ou mal feito – seja escutado por aqueles para quem, nós reclusos, somos transparentes. Eu digo nós, porque um técnico, um guarda prisional, um capelão, um visitador, também é recluso nas horas em que está recluso. Eu sou preso entre presos. Depois posso sair, tenho direito à minha liberdade. Mas a maneira – que passa por queimar um colchão, a agressividade que está mais ou menos contida – vem para fora. Deixa-se de ter barreiras, deixa-se de pensar. O desejo de vingança é muito grande.
Esse desejo de vingança existe porque há um clima de repressão?
Depende do que se entende por repressão. A prisão para mim é um espaço de pressão. De pressão existencial. Onde só se é livre é no pensamento.
Quando diz que a prisão é um espaço de pressão, também o é para os guardas?
Também, obviamente. Os guardas são pessoas, são profissionais, também têm histórias. O estabelecimento prisional também é um espaço relacional. Uma das funções é ter de cumprir a lei interna de cada estabelecimento prisional, que encarna num profissional, que é um cidadão de direito, que também tem de defender a sua função e tem direito a fazer reivindicações. Cumprir a ordem na ala, a ordem supõe que é importante para criar bem-estar, não é para criar pressão no outro. Os reclusos, há dias, em que, não estando bem, estão equilibrados. Outras vezes, não, já estão em stress, já podem, no seu relacionamento, ter atitudes provocatórias.
Nestas reivindicações do estatuto e dos horários, os direitos dos guardas colidem com os direitos dos reclusos?
Tem que se articular uma série de coisas. O sistema não pode ser de tal maneira rígido que não tenha também em atenção nas negociações com os guardas prisionais o sítio onde se mora, onde se trabalha e também a função de desgaste que é ser guarda. Agora, aproximando-se a época natalícia, as famílias e os reclusos sentem-se mais indignados com as greves que impossibilitam visitas. O que a sociedade está a percepcionar – com a greve nesta época – é a indignação das famílias, a indignação dos reclusos.
Existe uma falta de atenção que espelha a desvalorização que esta dimensão do sistema prisional tem na sociedade?
Também. Acho que as prisões são o espelho da sociedade que somos e que construímos, apenas espelho, é uma projecção, e é por isso que a gente não quer ver. A sociedade não quer ver. Quem se interessa socialmente pelo destino destes homens? E não estou a desvalorizar a função dos excelentes técnicos que, apesar do volume de trabalho, conseguem ser humanos. Quando falo do sistema prisional, estou a falar de um sistema em que ninguém cuida de ninguém. Quem é que cuida dos técnicos, quem é que tem as funções de cuidar dos guardas prisionais, de os escutar? Não é só para ouvir as suas reivindicações. De os escutar na vida.