Sorolla, um pintor optimista para descobrir no Museu de Arte Antiga
Primeira monográfica em Portugal deste pintor espanhol que viveu num mundo em transição e que não tinha medo da luz forte do Mediterrâneo. Mais conhecido pelas cenas à beira-mar, é Terra adentro que agora nos leva. Até 31 de Março.
Gostava de trabalhar ao ar livre porque lhe fazia falta o contacto directo com a natureza, os barulhos, os cheiros. Mesmo quando as telas eram de grandes dimensões, preferia estar num campo aberto a olhar para as montanhas, ou numa praia qualquer do seu Mediterrâneo, do que no estúdio. E isso deve-se, em boa parte, ao seu amor pela vida. “Sorolla teve duas grandes paixões — a mulher, Clotilde, e a pintura. E tudo o que lhe importa pintar é a vida, a realidade como ele a vê, com um optimismo que os intelectuais do seu tempo não lhe perdoam, mas que passa para tudo o que ele faz”, diz Consuelo Luca de Tena, directora do Museu Sorolla de Madrid, que está em Lisboa para inaugurar a exposição que abre esta sexta-feira no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).
Terra adentro: A Espanha de Joaquín Sorolla reúne 118 pinturas de Joaquín Sorolla y Bastida (1863-1923), um pintor espanhol que foi muito popular no seu país e fora dele, que está representado em grandes colecções europeias e norte-americanas, públicas e privadas, mas que em Portugal é ainda pouco conhecido. Oriundas sobretudo da sua casa-museu madrilena (só três pertencem a colecções privadas, uma delas à sua bisneta), legada ao Estado espanhol recheada de obras e objectos pessoais pela sua viúva, Clotilde García del Castillo, as obras expostas no MNAA dão uma perspectiva geral da carreira deste artista nascido em Valência, que fez parte da sua formação em Roma e que nunca chegou a pintar em Portugal, como planeara.
Esta primeira monográfica de Sorolla em Portugal, composta por nove núcleos, marca também o regresso do pintor ao MNAA, que já lhe reservara uma sala na exposição que em 2015-2016 fez em torno da Colecção Masaveu. Importada do Museu Sorolla, Terra adentro concentra atenções na pintura de paisagem que o artista, celebrizado pelas suas cenas luminosas à beira-mar com pescadores, mulheres e crianças, regista nas suas incursões pelo interior, quando, no âmbito de um movimento regenerador que se estende a várias áreas, está apostado em contribuir para a criação de uma nova imagem de Espanha. Em Lisboa, no entanto, a exposição tem o dobro das obras para que possa tocar, também, outros aspectos da obra deste espanhol que costuma ser “arrumado” entre os impressionistas, mas cuja catalogação não é fácil.
Olhar para Sorolla e mostrar a sua obra, escrevem no catálogo o director e o subdirector do MNAA, António Filipe Pimentel e José Alberto Seabra Carvalho, permite compreender melhor a pintura do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, “sem obediência às narrativas oficiais e académicas que, por assim dizer, passam do impressionismo e do pós-impressionismo para o cubismo ou o modernismo, como se entre ambos mais não tivesse havido do que um deserto”.
As obras “acrescentadas” a Terra adentro concentram-se nas últimas salas, onde estão arrumadas as cenas de praia que o tornaram popular, como as luminosas Meninas no Mar (1909) e Mar e rochas de San Estebán (1903), e os estudos de grandes dimensões que fez para a maior encomenda que recebeu em toda a sua carreira, a do ciclo para a biblioteca da Hispanic Society of America, em Nova Iorque, fundada pelo filantropo Archer M. Huntington. Neles se podem ver vários tipos tradicionais, mostrando a riqueza de costumes e actividades das diversas regiões de Espanha, em cidades como Segóvia, Ávila e Salamanca.
“Nestes estudos de tipos, que nas pinturas finais parecem ganhar vida, como no cinema, ele regista todo um folclore que está a desaparecer dentro do novo movimento nacionalista, que quer dar a Espanha uma imagem nova, uma identidade nova”, diz Carmen Pena, a comissária da exposição.
Foi no âmbito desta encomenda para a Hispanic Society que Sorolla, explica ao PÚBLICO o subdirector do MNAA, planeou uma vinda a Portugal: “Ele não vem por causa da agitação do sidonismo, mas tencionava vir. A perspectiva da encomenda da Hispanic Society vai no sentido de registar as regiões da Ibéria, da Hispânia, e, nesse caso, trata Portugal como se fosse mais uma.”
Portugal surge apenas uma vez nestas obras etnográficas em que Sorolla parece querer “salvar a memória da Espanha antiga, salvá-la do esquecimento que a industrialização quer impor”. É numa pintura em que se vê, na outra margem do Guadiana, a silhueta da vila raiana de Castro Marim, com homens e mulheres em trajes tradicionais do Algarve e, inusitadamente, do Minho.
Experiência fotográfica
O desconhecimento que Portugal tem da obra de Joaquín Sorolla não é fácil de explicar, já que a sua popularidade em vida foi grande, tanto em Espanha como nos Estados Unidos. Lembra a directora do Museu Sorolla que o pintor atraiu multidões nas suas primeiras exposições norte-americanas, em 1909. Cidades como Buffalo, Boston, Chicago e St. Louis tiveram filas à porta dos museus e em Nova Iorque bateu recordes de visitantes. “Mais de 200 mil pessoas foram a esta exposição em Nova Iorque, que durou um mês. Foi um êxito delirante que lhe valeu encomendas para muitos retratos, incluindo o do Presidente americano William Howard Taft.”
Segundo o diário El Español, Sorolla levou para essa digressão americana um número impressionante de pinturas – cerca de 350, das quais vendeu 200. “As que trouxe de volta foi as que não quis vender”, diz Consuelo Luca de Tena, reforçando a ambição do artista valenciano: “Este périplo americano foi muito importante para Sorolla, que, apesar de ter pintado sobretudo Espanha e de ter procurado construir-lhe uma nova identidade a partir da paisagem e dos elementos tradicionais que representou de uma forma muito moderna, sempre quis ser um pintor internacional.”
Em Portugal, a crítica e a História de Arte praticamente não o referem. “Não sabemos porquê. Também não há referências a pintores portugueses nas suas cartas”, diz Seabra Carvalho, para quem Sorolla está longe de ser um pintor de ruptura e é, antes de mais, um artista que, sem renunciar à ordem do academismo, é nele “profundamente moderno”.
A retrospectiva que a National Gallery de Londres lhe vai dedicar entre Março e Julho do próximo ano, e que viaja depois para a Irlanda, está a ser promovida como a “primeira exposição britânica” dedicada a um “mestre da luz”, do impressionismo, e parece decorrer, em parte, do “redescobrimento” internacional de que o pintor tem vindo a ser alvo nos últimos 20 anos na Europa e nos EUA (à sua programação também não deverá ser alheio o facto de o director da National Gallery ser desde 2015 Gabriele Finaldi, grande conhecedor da pintura espanhola que foi o n.º 2 do Museu do Prado, onde houve uma grande monográfica de Sorolla em 2009).
“Sorolla é muitas vezes apresentado como um pintor impressionista mas, para mim, sendo uma consequência do impressionismo, ele é já um pós-impressionista”, defende Consuelo Luca de Tena, lembrando que o artista valenciano se define como “naturalista” e tem um domínio total da luz que em parte vem da fotografia (no começo da sua carreira coloria fotografias no estúdio do seu futuro sogro). “Ele usa uma pincelada larga, ao contrário da maioria dos impressionistas. Há que pintar depressa, diz, porque a luz muda depressa. Esta consciência faz parte do seu domínio das técnicas da fotografia”, explica ao PÚBLICO a directora do Museu Sorolla.
Numa das pinturas do primeiro núcleo da exposição, um delicado e algo inesperado Estudo para uma vela (1894), vê-se bem essa ligação à fotografia, acrescenta por sua vez a comissária, Carmen Pena: “Ele domina a composição e os efeitos luminosos a partir da sua experiência fotográfica.”
E domina a luz mesmo quando ela é muito difícil, garante Luca de Tena. “Por norma os impressionistas que pintam praias preferem as do Norte, as da Normandia, porque a sua luz é mais suave. Uma luz intensa, dura, branca, como a das praias do Mediterrâneo, é muito mais difícil de pintar… Mas Sorolla, que usa as maneiras de iluminar novas dos impressionistas, não tem medo dela.” Nas suas pinturas, explica, os primeiros planos são geralmente mais escuros do que os segundos para que pareça que a luz vem de dentro.
Pintar e amar
Atravessando um período em que Espanha procura reinventar-se política e socialmente apostando na educação, que urge reformar para que não continue a promover as glórias de um passado em que muitos intelectuais não se revêem, Sorolla vai apoiar um dos mais arrojados projectos pedagógicos que surgiu em 1876, com o país já mergulhado num clima de depressão, acentuado 20 anos depois com a perda das últimas colónias ultramarinas. A Institución Libre de Enseñanza, fundada por uma série de intelectuais que defendiam, como o próprio nome indica, a liberdade de ensino, rejeitava a pintura historicista que durante décadas animara os salões e defendia o regresso à paisagem pura, sem narrativa, um programa feito à medida de Sorolla. E de um Sorolla mais introspectivo, como o de Terra adentro.
“As suas paisagens puras do interior não têm figuras, não têm símbolos. Mas o que ele quer, o que o apaixona, seja no interior seja à beira-mar, é transformar a realidade em pintura.” E isso vê-se nas obras que agora estão no MNAA e que vão das praias do País Basco, com os contrastes fortes de que o artista tanto gostava, à Andaluzia dos ambientes dourados de cores garridas, quentes. “A sua outra paixão era a mulher, Clotilde, por quem era verdadeiramente obcecado”, diz Carmen Pena.
Musa e amante, Clotilde García del Castillo é também a companheira com quem Sorolla discute o seu trabalho e a mãe dos seus três filhos. E a família, na intimidade da casa ou nas horas de lazer no Levante espanhol, é um dos temas recorrentes da sua pintura.
“Sorolla desenha e pinta Clotilde vezes sem conta ao longo de toda a sua carreira”, diz a comissária, chamando a atenção para o retrato que abre a exposição, uma obra de meados da década de 1880 que passa quase despercebida nessa primeira sala em que se faz, no sentido literal, uma cronologia da vida e da obra do artista. “A relação entre os dois é muito apaixonada, mas tem também um lado muito cerebral. Sorolla conta muito com a opinião de Clotilde, o que não é comum nos artistas da época.”
Chegam a escrever-se duas vezes por dia quando o pintor está longe e essa correspondência publicada nos volumes de Epistolarios de Joaquín Sorolla – mensagens onde o amor e o desejo convivem com o pragmatismo da vida quotidiana – mostra quão cúmplice é a relação entre os dois. “Ando coxo, faltam-me as tuas opiniões serenas e os teus beijos apaixonados”, escreve o pintor à mulher em Fevereiro de 1908. “Pintar e amar-te é tudo. Parece-te pouco?”