Justiça e Corrupção (III)
O contribuinte provavelmente terá já entrado com mais de 20 mil milhões de euros para ajudar a banca. Porquê? Ninguém sabe.
Com esta terceira crónica termino a minha reflexão sobre o estado atual da justiça portuguesa e do combate à corrupção. E acrescento um curto apontamento sobre a regulação da comunicação social.
1. Uma notícia com o título “Tribunal Judicial de Braga condenou nesta segunda-feira a um ano e meio de prisão efetiva um homem que roubou seis euros” animou as redes sociais na semana passada. A frase é uma inverdade, pois a condenação não foi especificamente pelos seis euros roubados. Contudo, na minha perspetiva, a questão mais interessante não é essa, mas a frase seguinte: “O arguido vai ter de devolver os seis euros à vítima e pagar uma indemnização de 250 euros por danos não patrimoniais.” Por outras palavras, neste caso particular, a reposição do património adquirido ilicitamente obedece a uma taxa de 100%. E os danos não patrimoniais são calculados como cerca de 40 vezes os danos patrimoniais. Ora, nos casos mediáticos a que vamos assistindo – lembremos o BPN ou o BPP –, a dita taxa de reposição é cerca de 1%. E danos não patrimoniais nem entram na conversa (supostamente porque não houve violência, nem perdas morais ou emocionais pelas vítimas, nomeadamente os contribuintes). Consequentemente, podemos dizer que, no ordenamento jurídico português, a taxa de recuperação de ativos pode ser qualquer número entre 1% e 100%. E quanto a danos não patrimoniais, simplesmente não há qualquer princípio multiplicador consistente e coerente; a própria doutrina exibe com orgulho o casuísmo da conversão monetária de valores não económicos (porque, felizmente, o direito português não foi contaminado pelo economicismo que abunda nas outras jurisdições). Infelizmente, a obsessão mediática com as penas de prisão esconde uma realidade bem mais preocupante – a completa aleatoriedade da compensação dos danos patrimoniais e não patrimoniais.
2. Pensemos nos dez anos do caso BPN. Cerca de quatro mil milhões de euros depois, desaparecidos ou esfumados (bem acima dos 800 milhões que o então ministro Teixeira dos Santos anunciou; um erro de previsão na ordem dos 500%, absolutamente coerente com a merecida condecoração pelo Presidente Cavaco). Pagos pelo contribuinte. A recuperação de património anda nas centenas de milhares de euros. Espantoso? Se tivermos em conta a tal reforma da justiça que o PSD e o PS, mais o CDS, insistem estar em curso, não tanto. Não se conhece uma única preocupação partidária com o tema. Por conseguinte, não há uma única proposta para remediar o assunto. Ou abundam as desculpas – o património evapora-se porque são atividades de risco; a globalização impede o arresto dos bens que possam responder por tamanhas quantidades; num Estado de direito democrático, não se pode evitar a realocação fraudulenta de património; o importante é a reinserção social dos delinquentes (em estabelecimentos prisionais para doutores, pois claro); a remoção total dos ganhos ilícitos só é preocupação de ordenamentos jurídicos atrasados (Portugal tem o melhor direito processual penal da Europa). Ou aposta-se nos bodes expiatórios – a falta de preparação e meios do Ministério Público (situação que o poder político, desgraçadamente, não conseguiu resolver nos últimos 40 anos); a jurisprudência garantista do poder judicial (por contraste com o caso espanhol, onde curiosamente a acusação habitual é que os magistrados judiciais se comportam como contribuintes ofendidos e desrespeitam as garantias constitucionais dos arguidos banqueiros); o populismo judiciário de alguma opinião publicada.
3. O contribuinte provavelmente terá já entrado com mais de 20 mil milhões de euros para ajudar a banca. Por má regulação e supervisão durante décadas? Por roubo e burla? Por gestão danosa? Por inevitabilidade da globalização? Por corrupção? Ninguém sabe. Opiniões e palpites não faltam, aliás até abundam. Mas um livro branco que explique ao contribuinte porque lhe foi exigido este esforço, isso nem nos sonhos mais criativos do poder político. O circo de comissões de inquérito, inócuas e inconsequentes, vale bem mais que uma investigação técnica e rigorosa, neutra e isenta.
4. E, nesse contexto de transparência e rigor, faz sentido lembrar o recente apelo reiterado do Presidente da República sobre a comunicação social. Não é preciso regular o lobbying (não há forma dos partidos se entenderem no tema). Não é preciso reformar profundamente a ERC. Não é preciso acabar com as portas giratórias, talvez até mais portas escancaradas – dos jornalistas que circulam fluidamente entre a comunicação social e os gabinetes ministeriais, as sinecuras do regime e os gabinetes de imagem das empresas públicas e dos políticos que asseguram 90% do comentário televisivo, radiofónico e da opinião publicada. Não assusta que escrutinados e escrutinadores se confundam sistematicamente num emaranhado de dependências funcionais complexas (se a indústria da comunicação social remunera a classe política, como pode a mesma classe política usar depois recursos públicos para financiar a dita indústria?). Não é preciso disciplinar a promiscuidade. Não é preciso instaurar uma cultura cívica de combate efetivo aos conflitos de interesse. Urgente, mesmo, é estudar como o Estado pode financiar a comunicação social. E com imaginação.