Por mais estranho que pareça, até uma sanita por estrear esquecida no meio de uma sala em obras num antigo palacete, no Porto, pode arrancar gargalhadas quando o motivo da conversa é o humor. Por causa daquele objecto, a designer de interiores Nini Andrade Silva começa a desfiar o novelo da história do projecto WC Boutique Hotel, em Lisboa, onde estão banheiras na recepção e a farda dos funcionários é um robe e uma toalha na cabeça.
O humor está um pouco por toda a parte, que o diga o arquitecto Manuel Graça Dias, que projectou um edifício em forma de golfinho, em Chaves, que também arrancou gargalhadas durante o processo de construção; ou que recuperou o velho teatro Luís de Camões, na Ajuda, em Lisboa, onde tem desenhos de ilusão óptica em grande escala. Ou que o diga Sheila Moura Azevedo, que projectou apartamentos, no Porto, que têm frases típicas como “laurear a pevide”, “picar o ponto”, “apanhar uma rosca” ou “correr as capelinhas”. O que é tudo isto senão sentido do humor na arquitectura, no design de interiores e na decoração?
Quando Nini Andrade Silva partiu para o projecto do WC Boutique Hotel, em Lisboa, disse logo à equipa: “Enlouqueçam! Porque enlouquecer é não querer raciocinar dentro da caixa, é pensar em algo diferente. É no meio dos disparates que nascem as grandes ideias”, conta, enquanto solta uma gargalhada. Foi também num momento de boa disposição que a Culto a encontrou debruçada sobre dezenas de amostras de tecidos de luxo com as mais variadas cores e feitios espalhadas em cima de uma mesa.
“Parecia mesmo uma barraca de feira pela diversão e pelo gozo que é tocar e sentir os tecidos. Só que estes são de luxo”, reforça por entre risos. Ficou quase tudo escolhido, até o mobiliário deste futuro cinco estrelas Vila Foz Hotel & Spa, num centenário palácio da Avenida Montevideu, na zona mais chique da Foz do Porto, e que deverá abrir as portas no próximo ano. Este projecto não deverá ter tanto humor como o WC Boutique Hotel, em Lisboa, ou o Hotel Teatro, no Porto.
Dos momentos divertidos no processo criativo, a equipa da designer de interiores também não se livra. Estão lá. Trata-se de fazer coisas sérias com boa disposição. “Gosto de ser conhecida pelo sentido de humor nos trabalhos. Sem isso não vale a pena. Mas rir não é gozar”, salvaguarda. A madeirense, que até já foi distinguida com o grau de oficial da Grande Ordem do Infante D. Henrique, cresceu numa casa cheia de gargalhadas, com muito humor, teatro e cantorias. Em pequena, quando fazia disparates, a mãe dizia-lhe: “Pareces uma garota do Calhau.” O nome pelo qual eram conhecidas as crianças desfavorecidas, das praias do Funchal. E os calhaus foram ficando de tal modo entranhados que é neles que se inspira para dar forma às peças de mobiliário e pinturas que cria. “Há sempre um calhau na minha vida”, diz em tom de brincadeira Nini, que também apoia a Associação Garota do Calhau para ajudar crianças desfavorecidas do arquipélago.
“Sempre que vou para um projecto, lembro-me das histórias do meu tempo de miúda e dos teatros que fazia”, recorda. A madeirense é reconhecida mundialmente por contar histórias em cenários de luxo, com um estilo em que tudo é pensado ao mínimo pormenor. E o humor é um requisito para trabalhar nos seus ateliers de Lisboa e do Funchal, onde também abriu o Design Centre Nini Andrade Silva, no edifício do Molhe — Fortaleza da Nossa Senhora da Conceição, que foi a casa de Gonçalves Zarco, o navegador português que chegou à Madeira. Recentemente recebeu o Prémio da Inovação Hoteleira de Portugal pelo projecto do Hotel Palácio do Governador, em Lisboa. Em 2017 foi nomeada pelos International Hotel and Property Awards para o WC Boutique Hotel e no ano anterior venceu o Óscar do Turismo para o Hotel Palácio do Governador, o World Travel Awards na Categoria Europe’s Leading Design Hotel para o The Vine Hotel, na Madeira.
O processo criativo é uma diversão
Já no andar de cima do palacete portuense, sentada na soleira da varanda de uma das salas, a designer de interiores vai dizendo que “as emoções são para ser sentidas à flor da pele ou, diríamos antes, [no caso do WC Boutique Hotel] à tona da água!”. Nini inspirou-se numa situação que viveu quando, há muitos anos, estava num dos elevadores das Torres Gémeas, em Nova Iorque. Ela, de vestido de noite, alguns homens de smoking, e um deles destacava-se por estar de robe. “Então pensei: ‘Isto é tão engraçado que um dia vou fazer uma coisa que não tenha nada que ver.’” E assim foi.
“Costumo dizer que, quando vou a um hotel, vou logo ver a casa de banho”, conta. Quando os proprietários do hotel lhe pediram um projecto diferente, a designer respondeu: “Fazer um WC. Deveria ser espectacular!”, lembra entre risos. “E a cliente perguntou-me: ‘WC?! Mas o que quer dizer com isso?’ Eu respondi-lhe que as pessoas, em vez de dormirem nos quartos, dormiriam numa instalação sanitária. A cliente olhou para mim e disse: ‘Confio em si!’”
A partir dali, Nini teve carta-branca. Resultado? “Começámos a enlouquecer completamente...”, ri-se. “Só o nome WC já dava vontade de rir. Um dia, um taxista comentou que era um nome horrível e perguntou-me: ‘Ó minha senhora, quem é que faz uma coisa dessas?’ E respondi: ‘Eu!’” A designer convidou-o a entrar e o homem ficou espantado como tantas pessoas que “entram e pensam que é um spa e depois, quando se apercebem de que é um hotel, ficam entusiasmadíssimas, bem-humoradas”, revela.
A designer levou tão a sério a decoração que, no dia da inauguração do hotel, foi de pijama e de rolos na cabeça. “Foi tão engraçado andar assim no meio das pessoas de fato. Dava-me imensa vontade de rir”, lembra divertida. Perdida de riso fica também quando entra no Hotel Teatro, na Baixa do Porto, antigo Teatro Baquet, e vê a fotografia de uma plateia na parede, com a sua cara e de outras pessoas relacionadas com a obra “em cabelos, corpos e roupas de outras pessoas. Era para ser posta no chão, mas a meio da noite acordei e pensei: ‘Então vão andar por cima das nossas caras?’” E foi parar à parede.
Por ali há um charriot com roupas de peças de teatro, cedidas por Filipe La Féria. “É engraçadíssimo ver os hóspedes a vestirem as roupas e a rirem-se”, afirma. Divertido sim, mas é caso sério porque o projecto venceu, em 2011, o melhor design de interiores de Portugal e da Europa nos European & Africa Property Awards. E a brincar a brincar, com algum humor, Nini vai somando prémios, como aconteceu com o Hotel The Vine, na ilha da Madeira, inspirado no tema do vinho e nos elementos naturais do espaço em que se insere. “Foi um dos hotéis com que ganhámos mais prémios”, recorda, lembrando que “é muito engraçado porque as banheiras têm o formato dos antigos carros de bois e os lavatórios de um carro de cesto da Madeira, os que descem do monte para a cidade do Funchal”, diz por entre risos. Os pavimentos das áreas sociais e dos duches têm calhaus das praias da ilha.
Com um brilho nos olhos, Nini lembra o processo do Hotel Movich Buró 26, na Colômbia, e como se vestiu a preceito de colombiana, de saia e chapéu “volteado” para a apresentação do projecto no país. “Queria mostrar o que tinham de bom, a cultura colombiana. E estava com uma vontade tremenda de rir”, conta, recordando as caras sérias de quem a ouvia. Então, pôs música e dançou. Se aquilo corresse para o torto, não havia volta a dar. Correu bem e ficou com o projecto da cadeia de hotéis colombiana. Os chapéus lá estão numa das paredes, assim como muitos outros motivos da região, como o artesanato e os tapetes em materiais locais.
Não há regras no humor
Para a designer de interiores Gracinha Viterbo, “a vida sem humor não faz sentido e é sempre bom saber viver com ele à nossa volta, inclusive na decoração”. Afinal, diz, “um bom profissional tem de saber incutir emoções nos seus espaços e o humor é, sem dúvida, uma dessas emoções”.
Foi em 1979 que a mãe, Graça Viterbo, abriu um atelier no Estoril. Em pequena, Gracinha sonhava seguir-lhe os passos e, para isso, foi estudar para Londres. Depois de uns anos fora, voltou a Portugal, e hoje assume a direcção do Viterbo Interior Design. Nos últimos anos, a designer de interiores tem sido reconhecida e premiada. Já ganhou o International Property Award para a melhor casa de luxo europeia; já foi distinguida com o Andrew Martin Interior Design Award, os conhecidos Óscares da decoração.
No seu trabalho, o humor entra e “sem regras”. “Pode ser uma palavra, uma frase num néon num lugar improvável, almofadas com frases irónicas ou palavras provocadoras, gravuras ou arte desafiante e rebelde”, descreve. Como a imitação de uma tartaruga gigante na parede e de um cão enorme no chão, ou uma cadeira com o formato de uma mão. Ou uma almofada em forma de boca e uma estatueta de um macaco que é um candeeiro.
“Um detalhe aqui e outro ali que desafie o humor nos espaços mesmo mais sérios”, sublinha a designer de interiores. Podem ser uns pormenores mais discretos do que outros, “mas que fazem parar e reagir, sorrir até, e sentir”, continua. O mais engraçado é, afinal, “a surpresa de encontrar o improvável na normalidade”. Como acontece em muitos dos seus projectos em vários pontos do mundo, como em Angola, Singapura ou Tailândia, em todos Gracinha Viterbo conta uma história. Também a conta na sua recente loja Cabinet of Curiosoties, no Estoril, que tem dez salas, galeria, antiquário e um espaço com objectos diferentes, “peças curiosas e improváveis, muitas delas rebeldes, únicas e com muito humor”.
Mas também se pode tropeçar no humor na execução da decoração. “As instalações de projecto são sempre os momentos mais fortes e memoráveis para a minha equipa”, refere, lembrando uma cliente “muito divertida” para quem decorou uma penthouse em Banguecoque e que pôs toda a equipa a dançar. Ou as viagens em que leva artesãos e criativos ao estrangeiro. São tantas as “situações engraçadas” que Gracinha Viterbo confessa que davam um livro. “Mas tornar real o que, durante meses, é um sonho é muito especial na profissão”, resume.
As frases típicas nas paredes
Mais a norte, no Porto, a designer Sheila Moura Azevedo, do ShiStudio, em Matosinhos, encheu sete apartamentos para alojamento local, na Rua de Trás, com frases típicas como “laurear a pevide”, que significa ir arejar, “picar o ponto”, que é visitar a namorada a casa dela, ou “andar no laréu”, que é passear. Outros apartamentos estão baptizados com “apanhar uma rosca”, que é o mesmo que uma bebedeira, ou ainda estar na “amena cavaqueira”, que é ter uma agradável e animada conversa com alguém.
Todas elas entram logo no ouvido de tão divertidas que são. “A história por trás deste projecto é já de si engraçada”, conta a designer de interiores. Esta é uma daquelas artérias portuenses muito antigas e apertadas. Os hóspedes corriam o risco de ir à janela e dar de caras com roupas nos estendais a uma curta distância, e de ouvir as divertidas frases típicas sem as perceberem.
O melhor era contornar a situação. E Sheila Moura Azevedo começou, então, a questionar-se: e se usasse as expressões nos apartamentos, para não causar estranheza? Podiam ser um cartão-de-visita para o turista que acaba por, de uma forma bem-humorada, viver dentro de portas uma experiência única do Porto e das suas gentes.
“Se o espaço fosse requintado ou demasiado neutro, a surpresa dos hóspedes à chegada poderia ser nefasta para as pontuações nas plataformas de aluguer”, pensou. Solução? “Trazer o Porto verdadeiro, popular, das vendedeiras, dos frequentadores das tascas, dos misteres tradicionais, para dentro dos sete apartamentos”, recorda Sheila.
Baptizou cada um dos apartamentos com uma expressão popular e decorou-os com objectos, frases nas paredes que tivessem tudo que ver com elas, como cestas, chapéus, pratos de barro, capelinhas, ou um estendal na recepção e as cabeceiras feitas de liteiras ou de vime natural. Sheila desenhou ainda cadeirões, cabeceiras, mesas de apoio. Com muita criatividade e humor, os mesmos trunfos que usou no projecto dos Genuine Oporto Apartments, outros quatro apartamentos para alojamento local, no Porto, também com divertidas frases inscritas nas paredes. Como “Ó freguês, oh p’ra estas pencas tão gordinhas e boas!”, “Ai que rica sardinha”, “Ó meu rico São João” e “das tripas coração”. Até porque, para Sheila, “o humor é fundamental em tudo na vida, e na decoração não seria diferente”. Qualquer ambiente, por mais elegante ou mais descontraído que seja, pode, então, ser pautado por elementos com algum humor mais subtil ou, como neste caso, mais evidente.
Há humor no design português?
Existe humor no design e na decoração em Portugal? Sim, respondem as designers de interiores. “É frequente vermos espaços com elementos humorísticos. Especialmente em hotelaria, restauração e comércio”, diz Sheila Moura Azevedo. Gracinha Viterbo acrescenta: “Somos um país com uma imensa herança artística e criativa. Cada vez mais se está a ganhar confiança em sair da caixa e ser original.” Crê mesmo que Portugal está, “cada vez mais, na crista da onda do design internacional”.
A este propósito, Guta Moura Guedes, da Experimenta Design, recorda à Culto quando a Experimenta Design criou a marca de design português Designwise. “Parte do briefing que entregámos aos designers apelava ao humor, algo que também guiava a escolha que fazíamos de peças já existentes no portfólio dos designers.” E assim foi. Com as Juicy Boobs, dos Dasein, que eram um espremedor duplo, os lençóis Couple, de Isabel Machado e Filipe Pinto, que tinham imprimido uma fita métrica, para medir o espaço de cada um na cama.
Guta Moura Guedes lembra ainda a colecção que a Experimenta Design criou para a Corticeira Amorim, Materia, que tem peças com sentido de humor. “Como o Pino, do designer Daniel Caramelo, que é um pequeno objecto de forma antropomórfica com um coração, onde se podem espetar alguns pioneses em locais estratégicos ou simbólicos, ao verdadeiro estilo vudu”. Ou o Furo, do designer Fernando Brízio, que é uma taça de cortiça assente em duas dezenas de lápis de cor. “Tem as extremidades afiadas viradas para fora, que podem servir para desenhar ou para riscar o móvel onde pousam”, descreve, entusiasmada.
É importante haver humor no design? Para Guta Moura Guedes, “não é importante nem obrigatório, é puramente opcional. É um estilo, uma forma de encarar o design como outra qualquer”. Só que as peças bem-humoradas, divertidas, continua, “desanuviam-nos, alegram-nos, trazem-nos mais possibilidades e dinamismo do que outras mais ‘silenciosas’”. Para a curadora, “o humor desestabiliza, movimenta, e quando está presente no design pode ter uma enorme eficácia, pois aproxima-se das pessoas de um modo muito rápido e fica perto, no seu dia-a-dia”. Basta o nome da peça ou o texto que a acompanha. “Outras vezes é a combinação dos materiais, a inovação no modo construtivo”, realça.
Porque, afinal, o humor é muito subjectivo e, como tal, sublinha, “nunca há garantia de que ele seja visto da mesma forma por todos”. Também há as cores mais bem-humoradas, as mais claras e brilhantes. “Mas não esquecer o preto e a importância milenar do humor negro...”, conclui.
A arquitectura não pode ser um drama
Mas o humor está só na decoração de interiores? Então e no edifício propriamente dito quando construído, a sua arquitectura pode ter humor? Foi o que o arquitecto Francisco Rocha investigou para a sua tese de mestrado do curso de Arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Quis saber se realmente havia humor na arquitectura, porque “normalmente [esta] não está associada a este estado de espírito”, elucida Francisco Rocha ao telefone a partir da Suíça, onde trabalha desde que terminou o curso.
“São quase cinco séculos de história de arquitectura que apresentam traços de humor”, refere. Entre os muitos arquitectos que estudou, estão Álvaro Siza Vieira, por exemplo, que “recorre a elementos puramente arquitectónicos para pautar as suas obras de ‘travessuras’ delicadas. Portas, janelas, pilares, escadas são usados como veículo de emoções, por vezes inesperadas”. Ou Eduardo Souto de Moura, que, diz, “se deixa envolver por inspirações não exclusivas da arquitectura. E projectou uma casa invertida”.
Depois de estudar 25 obras de arquitectura, o jovem concluiu que há humor na arquitectura. “Podem ser coisas discretas que as pessoas não vêem logo”, sublinha Francisco Rocha, que descobriu que o humor também pode ser mais uma ferramenta que o arquitecto tem na abordagem ao projecto, além, por exemplo, do programa, das necessidades do cliente, vistas, exposição e declive do terreno, entre outras. “Defendo que o sentido de humor, que é das coisas mais subjectivas que existem, pode contribuir para um projecto”, sublinha. Pode ter as suas funções de habitar com toda a segurança, mas pode perfeitamente ter algum sentido de humor mais ou menos visível a olho nu, porque ocorre durante o processo criativo ou de construção.
Por vezes, pode também ser uma forma de resolver um problema ou obstáculo que surge durante o processo. Como aconteceu, por exemplo, ao seu orientador de tese, o arquitecto Manuel Graça Dias, que se riu bastante com o projecto do edifício Golfinho, de habitação e comércio, em Chaves. Decidiu-se pela forma de golfinho para contornar a questão do terreno onde iria ser edificado, numa curva junto a uma rotunda. “Criei, então, um edifício curvo, mas depois, num dos lados, passava um ribeiro, e fiz uma curva para dentro para fugir ao ribeiro. Depois parecia mesmo a cabeça de um golfinho”, graceja Graça Dias. “Na outra curva parecia o rabo deste animal. Isto foi uma maneira bem-disposta de resolver o problema. O cliente ficou tão entusiasmado”, recorda, por entre risos.
As pessoas começaram a chamar-lhe o “edifício do golfinho”, e assim ficou. A dada altura da obra, continua, “ouvia-se dizer ‘já fizemos o rabo e a cabeça e já só faltam as duas postas do meio!’, e riam-se”. O que é isto senão sentido de humor? “Brinca-se na arquitectura, não no sentido de brincar com a vida das pessoas que vão para lá viver, mas pode-se, sim, dentro do processo criativo, ter boa disposição e até surgir alguma graça”, afirma. O importante, clarifica, “é não fazer da arquitectura um drama de uma seriedade absoluta”.
Mas depende da maneira de ser de cada arquitecto, claro. Pode ser uma atitude durante o processo criativo, como, por exemplo, aconteceu no velho Teatro Luís de Camões, na Ajuda, em Lisboa, e que foi feito em co-autoria com o seu colega de gabinete, Egas José Vieira — os dois são autores do Pavilhão de Portugal na Expo de Sevilha.
“Divertimo-nos imenso a fazer este projecto”, recorda. O objectivo era modernizar o edifício para conforto do público e de quem trabalha no teatro; e, ao mesmo tempo, preservar o clima naif de teatro do século XIX. “É um teatro pequeno e tentámos aumentar o espaço de recepção do público”, recorda. Para isso, foi posto um desenho clássico com cubos para criar uma ilusão óptica, “o que introduz uma nota de surpresa”. “Chegaram a perguntar-nos: ‘Então o sítio é pequeno e vocês fazem um desenho grande?’, e isso tem um certo humor”, continua.
Uma característica que também se evidencia quando mantiveram as escadas antigas, que eram difíceis de subir, e por cima dessas colocaram umas mais cómodas. “Foi uma brincadeira que fizemos com a questão do património, a de manter a traça original do edificado, e depois fica o paradoxo entre o antigo e o moderno”, elucida. Os arquitectos também se decidiram pela pintura às riscas, de amarelo e preto, como se fossem fitas de aviso, em todas as passagens em que é preciso baixar a cabeça para passar. E são muitas.
Posto isto, Graça Dias defende que “o humor é contrariarmos um pouco o senso comum, não deixar que as verdades absolutas sejam encaradas como tal”. Pode-se fazer uma obra com a máxima seriedade e depois no atelier haver momentos de bom humor, com uma frase que é dita ou uma situação que acontece. “Até sair do atelier, um projecto demora muito tempo e podemos ser surpreendidos com momentos de boa disposição em que um problema pode ser resolvido de uma forma divertida”, continua.
O humor de Siza Vieira na Casa Fez
“A arquitectura implica tantas considerações que, muitas vezes, é difícil concretizar. Há muita burocracia e por vezes obstáculos que é preciso relativizar que só mesmo com sentido de humor”, defende o arquitecto Alvarinho Siza Vieira, que com dez anos já desenhava com precisão. O filho do conceituado arquitecto Siza Vieira diz que “há momentos em que temos de ter uma atitude de sublimação e de graça”. Foi o que fez na Casa Fez, onde vive e cujo nome foi buscar à toponímia da rua onde se situa. E que se chama assim porque o arquitecto tudo fez, desde o projecto à gestão da obra. “O que, por si só, é irónico”, graceja.
Siza Vieira desenhou os puxadores, as portas e os corrimãos do edifício. “Só poderia rir e responder com algum sentido de humor à complexidade de todos os obstáculos” que foram surgindo, durante o processo da construção da casa. E fê-lo “com simbologia, recorrendo à figura do arlequim através de uma abstracção geométrica”, elucida.
“O arlequim é uma espécie de auto-retrato.” Assim como o corpo humano tem cabeça, tronco e membros, também o edifício está organizado em casa, atelier e centro de arte. A casa é onde vive. Esta encaixa-se com o espaço do atelier e, por fim, a terceira área é a do Centro de Arte, que já tem uma associação por trás.
“Há espólios da família, meus, da minha mãe e do meu pai”, explica. São documentos e obras de arte que podem ser apresentados ao público em exposições temporárias, mas também são organizadas visitas de estudo para estudantes, críticos e fotógrafos. Esta forma de o arquitecto reagir com humor vai, então, ao encontro da tese de Francisco Rocha de quem sim, há humor na arquitectura. E que é possível levar a boa disposição mesmo quando se trata de coisa séria.