Novas vacinas vão “sair do bolso dos portugueses quando há tanta coisa mais urgente”
Membro da Comissão de Vacinação diz que, quanto ao rotavírus e à meningite B, situação epidemiológica não justificaria entrada no programa nacional. Deputada do PCP explica que intenção foi acabar com actual situação de desigualdade.
A aprovação pelos deputados da introdução, de uma assentada, de três novas vacinas no Programa Nacional de Vacinação (PNV) é uma decisão que “vai sair do bolso dos portugueses quando há tanta coisa mais urgente em saúde”, lamenta Manuel Carmo Gomes, epidemiologista que integra a Comissão Técnica de Vacinação (CTV). "É profundamente lamentável esta vulnerabilidade ao lobby da indústria [farmacêutica]", acrescenta o membro deste grupo que é constituído por um grande número de especialistas de várias áreas.
A aprovação da proposta do PCP, que teve os votos conta do PS e a abstenção do CDS, também apanhou de surpresa a presidente da CTV, Ana Leça. “A vacinação não pode ser uma arma política, um mecanismo eleitoral”, reagiu a pediatra, lembrando que, num processo destes, o essencial é "olhar para os ganhos em saúde da população". Este tipo de análise "não é feito em cima do joelho, há subgrupos de trabalho para estudar cada vacina”, frisou ao PÚBLICO.
Das três vacinas em questão, segundo Manuel Carmo Gomes, a aprovação de duas não estaria sequer a ser considerada como prioritária, pelo menos por enquanto (por que esta avaliação é constante): a do rotavírus, que causa gastroenterites, e a da meningite B. Porquê? Porque, avaliando a situação epidemiológica do país, se concluiu que o risco para a população é actualmente “muito reduzido”, explica.
“O rotavírus está a ser acompanhado, mas não como prioridade porque não existe evidência de que a incidência de doença grave causada por rotavírus seja elevada", observa, lembrando que provoca sobretudo gastroenterites e que “é muito raro haver óbitos" por este motivo. Quanto à meningite B, a situação é acompanhada desde há vários anos pela CTV, mas os casos de “doença grave por meningo-B” até estão a descer, a “evolução da doença tem sido muito favorável”, acentua.
Já o alargamento da vacina contra o papiloma vírus humano (HPV) aos rapazes (a vacina já é dada no PNV às raparigas) está neste momento em avaliação, porque surgiram entretanto estudos de custo-benefício (no Reino Unido) que indicam que, sob certas condições de evolução de custos a médio prazo, "poderá ser custo-efectivo vacinar os rapazes”, adianta. Seja como for, nota, "a Europa está muito dividida quanto a isto e, evidentemente, é sempre mais fácil para países ricos com cobertura vacinal das mulheres inferior à nossa avançarem em situação de incerteza”.
O certo é que "a incidência de doença grave causada pelo HPV em homens é muito inferior à que é causada em mulheres”, observa. E dá o exemplo do cancro do colo útero: “Em Portugal no princípio deste século morria quase uma mulher por dia apenas devido a cancro do colo do útero. Não há cancro provocado pelo HPV em homens com uma incidência que se compare. O vírus transmite-se entre sexos e vários estudos mostraram que, se a cobertura vacinal em mulheres é alta (e a nossa é muito alta), o controlo da infecção nas mulheres é suficiente para ter um elevado controlo nos homens". Assim sendo, conclui, não parece, para já, "ser custo-efectivo vacinar também os homens “.
O que poderá então justificar esta aprovação "inédita", pelos deputados, da introdução de três vacinas no PNV? Terá havido aqui pressão dos laboratórios farmacêuticos, como especulou a ex-ministra da Saúde, Ana Jorge? Isso "faz todo o sentido", admite o epidemiologista, que lembra que desde “há anos” que a indústria farmacêutica faz pressão, quer relativamente à vacina do meningo B quer, mais recentemente, a propósito da vacina contra o HPV para homens.
Uma questão que o epidemiologista gostaria, a propósito, de ver respondida é a de se terão sido orçamentados os custos desta medida. “Os custos dependem do número de doses de cada vacina e até das idades em que são dadas. Das duas três, ou os deputados também decidiram sobre isto, ou seguem o que a indústria 'recomenda' (que em geral é por excesso), ou não fazem ideia quais são os custos”, diz.
“Tenho de assumir que os deputados não tomaram a decisão de ânimo leve, portanto decidiram qual o número de doses e quais as idades. Como são responsáveis, arrisco-me a presumir que até negociaram com os produtores um bom preço para cada dose”, diz, convidando-os a “apresentar os seus resultados” à CTV, integrada na Direcção-Geral da Saúde.
Saúde é investimento, não despesa, diz PCP
Carla Cruz, deputada do PCP, o partido autor da proposta, diz que não fizeram qualquer estudo a este propósito, apesar de terem efectuado uma “reflexão colectiva”. Mas o partido baseou-se, sobretudo, na recomendação da comissão de vacinas da Sociedade Portuguesa de Pediatria e numa audição do grupo de estudo do cancro da cabeça e pescoço. “Não tínhamos que fazer um estudo. É evidente que não negamos a importância dos estudos custo-efectividade. No entanto, a saúde não deve ser vista como uma despesa, mas sim como um investimento”, observa.
Sobre os custos que esta medida irá implicar, afirma que não faz ideia de qual será o montante. Carla Cruz acentua que aquilo que é determinante é acabar com a "actual situação de desigualdade" que se vive em Portugal nesta matéria. "Quem pode comprar estas vacinas (que são muito caras), compra, quem não pode, não compra, ou então faz das tripas coração para comprar", lamenta.
Para Manuel Carmo Gomes, esta não é, porém,"apenas uma questão de dinheiro". "A vacinação em massa tem impacto dramático sobre a abundância relativa de estirpes de microorganismos que apresentam diversidade biológica. Se um microorganismo se apresenta com duas 'caras' que competem pela colonização dos humanos, digamos A e B, e se a vacina só afecta o A, estamos artificialmente a favorecer o B e temos de avaliar as consequências desse favorecimento. As coisas podem-se complicar-se ainda mais."
Dá o exemplo da varicela: "Não vacinamos contra a varicela (a vacina é segura, eficaz e barata) porque o mesmo vírus causa duas doenças diferentes (varicela e 'zona') e existe boa razão para acreditar que vacinar pode aumentar seriamente a incidência de 'zona'". São, sintetiza, exemplos que "pretendem apenas ilustrar como estes assuntos da epidemiologia são muito mais complicados do que os deputados ou os leigos da epidemiologia pensam".