"Queres fiado? Toma!"
O quarto poder está frustrado, como antevia, em livro, o meu antigo professor de Teoria da Notícia Nelson Traquina.
O Presidente da República está preocupado com a sobrevivência da imprensa enquanto espaço de liberdade, informação e democracia. Eu também.
O Presidente acha que há uma crise grave e global que está “a criar problemas já democráticos, problemas de regime”. Eu também.
O Presidente defendeu, há dois dias e com todos os cuidados, um acordo de regime para uma intervenção transversal do Estado na comunicação social através de pequenas medidas. Eu agradeço-lhe o cuidado.
A solução não é nova – a fórmula do acordo de regime é. Há quem defenda que o Estado tem de cumprir a função de manter viva a imprensa, evitando a sua dependência face aos poderes económicos instalados, aos interesses pessoais ou empresariais. Tudo porque o financiamento do sector se tornou uma verdadeira dor de cabeça desde o advento da informação digital gratuita.
A intervenção do Estado – sem falar em nacionalização –? surge como uma alternativa condigna, nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa. “A grande interrogação que eu tenho formulado a mim mesmo é a seguinte: até que ponto o Estado não tem a obrigação de intervir?”, questionou-se o Presidente durante uma cerimónia em que são distinguidos os melhores trabalhos jornalísticos (e seus autores) do ano.
É fácil concordar com isto. Se o Estado “investe” milhares de milhões a salvar bancos, se há orçamentos que se rectificam só para injectar dinheiro na banca, se a troika autoriza “linhas de crédito” especiais para impedir a falência do sistema financeiro, não pode também haver apoios do Estado para salvar os media de uma crise que tem efeitos na própria democracia? O Presidente faz a pergunta. Eu também.
Mas o Presidente acrescenta que vale a pena resistir e que só ganham os que resistem. E alerta para o ponto que precisamente me causa dúvidas. Diz ele que “a erupção do que se chama, para simplificar, populismos e outros fenómenos do género, além de causas económicas e sociais que dão lastro a isso”, assenta igualmente na “presente debilidade crescente da comunicação social”, que é, no fundo, “a debilidade crescente da democracia”.
Ou seja, os populismos nascem quando a imprensa, tal como a economia, está enfraquecida e crescem porque as verdades alternativas e a desinformação falam mais alto do que a verdade informativa. Certo. O quarto poder está frustrado, como antevia, em livro, o meu antigo professor de Teoria da Notícia Nelson Traquina. Mas se está frustrado, vamos deixá-lo dependente do Estado, que hoje ainda não é populista (em Portugal), mas pode vir a sê-lo?
O argumento de que a imprensa frágil cria fenómenos populistas não será também válido para manter a “mão invisível” do Estado (que em vários Estados europeus até já é populista) longe da comunicação social? Vale a pena trocar umas ideias sobre o assunto.
A operação de salvação nacional de Marcelo Rebelo de Sousa é moderada – pequenas medidas como o porte pago – e é importante sobretudo porque lança o debate e exige uma reflexão atenta sobre a democracia que, a nível mundial, não está no seu ponto alto.
Quanto à crise dos media, a culpa é nossa também, que transformámos as notícias pagas do papel em ofertas digitais. Que nos iludimos a pensar que podíamos oferecer no online o que os leitores do papel já tinham pago. Só que o online evoluiu, a exigência aumentou, muitos dos leitores deixaram o papel e passaram para as plataformas digitais (é verdade que nunca como agora se leram tantas notícias) e deixaram de pagar pelo nosso bem essencial: a informação credível que tem de ser muito mais do que infotainment.
Agora, coabitamos ambos – informação credível, mais séria do que sexy, com desinformação, mais sexy do que séria – no mesmo espaço sideral e grátis. Aliás, não coabitamos, disputamos esse espaço. E, em muitos casos, o sexy está a ganhar (leiam-se, a esse propósito, os trabalhos que o Diário de Notícias tem escrito sobre o assunto). Os sites de desinformação não têm falta de leitores e a publicidade chega para os gastos – que são poucos, porque nunca há uma verdadeira redacção a suportá-los e cujos ordenados, por mais baixos que sejam, seria preciso pagar.
Continuava a escrever linhas e linhas sobre este assunto, mas o essencial está dito. Na imprensa, devíamos ter aplicado a máxima de Bordallo Pinheiro ou do Zé Povinho. “Queres fiado? Toma!”