A Rússia, a Ucrânia e a ponte da discórdia no estreito de Kerch
Após a anexação russa da Crimeia em 2014 e a guerra no Leste da Ucrânia, a ponte no estreito de Kerch está agora no centro do conflito geopolítico entre os dois países.
1. Nada é simples no espaço geopolítico da antiga União Soviética. Fisicamente uma ponte é construída para transpor obstáculos naturais ou artificiais, interligando pontos não acessíveis anteriormente, aproximando populações. Por isso, usualmente, nos conflitos internos ou internacionais, quem constrói (metaforicamente) uma ponte dá sinais de abertura, de vontade de diálogo e de cooperação com o outro. Mas não é assim entre a Rússia e a Ucrânia. A ponte construída pela Rússia no estreito de Kerch (ou estreito de Querche), na passagem do Mar de Azov para o Mar Negro, transformou-se na ponte da discórdia. Com uma extensão de cerca de 19 km, liga o território russo, via região de Krasnodar, à península da Crimeia. Ao mesmo tempo corta, ou dificulta, o acesso ucraniano ao seu território leste pelo Mar de Azov. Importa notar que, para o tráfego com origem ou destino nos portos ucranianos de Mariupol e Berdyansk, é a única rota possível. Em termos comerciais, o ferro, aço, carvão e cereais do leste do país são, ou eram, usualmente exportados por aí. (Ver “Russia’s illegal Crimean Bridge construction will cost Ukraine” in KyivPost 31/08/2017). Após a anexação russa da Crimeia em 2014 e a guerra no Leste da Ucrânia, a ponte no estreito de Kerch está agora no centro do conflito geopolítico entre os dois países.
2. Ao que estamos a assistir são ainda sequelas do final da União Soviética em 1991. Nessa altura, emergiram como Estados independentes a Ucrânia e a actual Federação Russa. As suas actuais fronteiras internacionais são as antigas divisões internas das repúblicas do Estado soviético. Assim, até 1991, a questão do estreito de Kerch e do acesso ao Mar de Azov não se colocava cnos termos actuais. Face ao Direito Internacional, era um mar interno da União Soviética. Com o fim da União Soviética, quer a Federação Russa, quer a Ucrânia, passaram a ter águas territoriais no Mar de Azov, tornando-o um ponto tendencialmente de atrito entre ambos os países. Para evitar essas tensões, foi assinado, em 2003, entre ambos os Estados, um Acordo de Cooperação para o uso do Mar de Azov e do estreito de Kerch. (Ver “Agreement between the Russian Federation and the Ukraine on cooperation in the use of the sea of Azov and the strait of Kerch” in FAOLEX). Todavia, a situação da anterior cooperação entre ambos, mudou radicalmente após a já referida anexação unilateral da Crimeia, feita pela Rússia, em 2014. Sendo geograficamente uma península, a Crimeia tornou-se — apesar do não conhecimento de iure pela comunidade internacional — num território de facto russo. Ao mesmo tempo, ficou com o acesso terrestre bloqueado pela Ucrânia e sem conexão directa com o resto da Rússia (excepto via marítima, usualmente feita por ferry para a região russa de Krasnodar, do outro lado do estreito de Kerch.) Foi neste contexto que Vladimir Putin decidiu avançar com a construção da ponte, numa obra de grande ressonância histórica — e simbolismo político — para a generalidade dos russos.
3. Planos para a construção de uma ponte ligando as duas margens do estreito de Kerch já existiam desde a Rússia dos czares. Em inícios do século XX, o czar Nicolau II teve esse projecto, o qual foi abandonado pelo desencadear da I Guerra Mundial. Na altura da II Guerra Mundial, os exércitos invasores nazis iniciaram a construção de uma ponte nessa zona para facilitar a passagem para o Cáucaso. Todavia, os trabalhos não chegaram a ser concluídos devido à contra-ofensiva do exército soviético, que repeliu a invasão nazi. A ponte acabou por ser finalizada pelos soviéticos em 1944, com os materiais deixados no local. Mas os blocos de gelo sazonais danificaram a estrutura construída e fizeram ruir vários suportes em inícios de 1945, levando ao seu abandono. (Ver algumas imagens históricas em https://www.most.life/o-proekte/istoriy/#screen-4). A ideia da sua construção ressurgiu após o final da União Soviética, entre russos e ucranianos, mas acabou por nunca ser concretizada. Agora foi mesmo concretizada, numa obra que decorreu entre 2015 e 2018. Para a Rússia, é um exemplo notável da sua engenharia civil — a ponte mais extensa da Europa. Cumpre um velho sonho desde o tempo da Rússia imperial dos czares. (Ver “Europe’s longest: Putin leads column of trucks at Crimean bridge opening ceremony” in RT News 15/05/2018). Mas na Ucrânia e no Ocidente a percepção é fundamentalmente outra e muito negativa. (Ver “Putin opens new bridge to Crimea, provoking Ukraine, Western ire” in Euractiv, 16/05/2018). Uma questão emerge: face ao Direito Internacional e ao já referido Acordo de 2003, podia a Rússia ter feito unilateralmente essa construção, a qual tem evidentes implicações na circulação marítima e na soberania?
4. Para o CIS Arbitration Forum — uma organização de arbitragem internacional que envolve académicos e diversos outros profissionais com o objectivo de resolver disputas ligadas a Estados e territórios da antiga União Soviética —, a resposta é clara: a ponte foi construída em desrespeito do Direito Internacional. Uma construção em tais circunstâncias exigiria sempre o consentimento da Ucrânia. Como já referido, antes do final da União Soviética em 1991, o Mar de Azov e o Estreito de Kerch foram qualificados como zona marítima interna soviética. Após o seu final, passou a ser uma zona marítima conjunta desses dois Estados sucessores: a Federação Russa e a Ucrânia. No Direito Internacional geral, o estatuto de mares fechados ou semifechados, como acontece com o Mar de Azov, é regulado pelos artigos 122.º e 123.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982. Essa Convenção impõe aos Estados limítrofes o dever de cooperar entre si na gestão dessas zonas marítimas. (Ver Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar / Convenção de Montego Bay in EUR-Lex). Isso ocorreu, até certo ponto, com o já referido Acordo de Cooperação para o uso do Mar de Azov e do estreito de Kerch de 2003, o qual definia, como já notado, esse mar como território marítimo interno dos dois países, remetendo a questão para legislação nacional da Rússia e da Ucrânia. (Ver “Will A Bridge between the Crimea and Russia Violate International Law?” 28/01/2015 in CIS Arbitration Forum). Todavia, a delimitação concreta do território marítimo entre ambos os Estados e/ou os moldes precisos em que seria feita uma gestão conjunta deste, nunca chegou a ser efectuada. E hoje, dado o elevado grau de conflitualidade existente entre ambos, não há condições políticas para o fazer.
5. O incidente que ocorreu a 25/11 no estreito de Kerch — no qual foram apreendidos três barcos da marinha ucraniana e detida a sua tripulação pelas forças navais russas — foi um incidente menor, ou constituiu um perigoso escalar de tensões que podem levar à guerra? (Ver BBC, "Russia-Ukraine tensions rise after Kerch Strait ship capture"). Nesta altura, não é fácil avaliar todas as possíveis consequências do ocorrido. Talvez seja apenas um episódio destinado a ser rapidamente ser esquecido, a menos que inspire uma nova versão do clássico filme sobre a II Guerra Mundial na Ásia-Pacífico A Ponte do Rio Kwai / The Bridge on the River Kwai (1957), de David Lean, agora com tonalidades e protagonistas ucranianos e russos. Em qualquer caso, a confrontação ocorrida parece conveniente para alimentar o fervor nacionalista, distraindo as atenções de outros assuntos importantes. Embora por razões substancialmente diferentes, pode estar a acontecer isso em ambos os países. No caso da Ucrânia, o actual Presidente, Petro Poroshenko, enfrenta uma difícil eleição presidencial nos primeiros meses do próximo ano, tendo o mais elevado índice de rejeição entre os candidatos já conhecidos. (Ver “Pre-election poll gives Poroshenko highest ‘anti-rating’ of all presidential candidates" in KyivPost 18/11/2018). Por isso, o agudizar do conflito com a Rússia, bem como a declaração da lei marcial, são eleitoralmente convenientes para Petro Poroshenko condicionar e afastar a oposição interna. Quanto a Vladimir Putin, ultimamente tem enfrentado também grande contestação interna devido às mudanças que pretende introduzir no sistema e idade de reforma, um assunto altamente impopular para a grande maioria dos russos. No imediato, os olhares vão centrar-se agora na próxima cimeira do G20 de 30/11 e 1/12 em Buenos Aires, na Argentina, e no que Donald Trump — sob suspeição de ligações à Rússia — irá dizer, ou deixar de dizer, a Vladimir Putin sobre o incidente do estreito de Kerch.