Penso nisto que vou escrever a seguir, e que estará algures entre a provocação e a “pista de reflexão”, na sequência do visionamento, quase sucessivo, de quatro filmes que me deixaram decepcionado e, mais do que só isso, naquele estado de exasperação e irritação que, presumo, os espectadores habituais de cinema experimentam com alguma frequência. Os quatro filmes foram, por ordem de visionamento: Viúvas, de Steve McQueen, Doubles Vies, de Olivier Assayas, Suspiria, de Luca Guadagnino, e High Life, de Claire Denis (o primeiro e o terceiro já chegaram ao mercado português, os outros dois, por certo, não tardarão). Quatro “filmes de autor”, de autores consagrados, regularmente aclamados e premiados naquela zona de contornos cada vez mais ténues entre os favores da crítica, os palmarés dos festivais e a relevância comercial. Se não gostei de nenhum, cada um pelos seus motivos específicos (são filmes “diferentes”, no fim de contas), tive perante todos eles uma sensação comum: se se trata de “filmes de autor”, encontrei neles muito “autor” e pouco “filme”, muita assinatura e pouco cinema. Lembrei-me de uma história que se conta sobre Picasso, que certo dia, sendo reconhecido pelo empregado do restaurante onde almoçava, acedeu ao pedido do homem para lhe fazer um desenho num guardanapo de papel — mas não assinou o desenho, e quando o empregado lho fez notar (“então, e a assinatura?”), Picasso teria perguntado: “mas você quer um desenho ou quer um cheque?”. Encontram-se cada vez mais filmes que são como este guardanapo, onde o desenho pouco ou nada importa perante a assinatura em baixo.
Atenção, que isto não é para tirar a ninguém a legitimidade para gostar dos filmes supra-citados (que têm muitos e respeitáveis admiradores, e ainda que não os tivessem), muito menos é, porque isso exigiria outra vastidão e outro rigor, um ensaio sobre o estatuto e o lugar do “autor” no cinema contemporâneo. Apenas umas quantas constatações, umas quantas perguntas. Por exemplo, enquanto constatação: praticamente desapareceu (da vista, pelo menos) a “produção em série”, em moldes e rotina industriais, por maioria de razão no cinema europeu mas até no cinema americano, onde todos os principais filmes, dos de Steve McQueen aos de, por exemplo, PT Anderson ou Wes Anderson ou Kathryn Bigelow ou James Gray, são como “protótipos” construídos em torno da figura do seu “autor”. Não deixa de ser uma ironia histórica que Hollywood (ou “Hollywood”, como lugar imaginário de onde emana o cinema americano) seja hoje, em grande parte, uma estrutura de produção ancorada no “autorismo” (a outra parte, a da produção em série, está confinada, em termos de primeiras linhas, ao gigantismo dos blockbusters, franchises e filmes de super-heróis — mas aí, por muito estimáveis que sejam gente como Matt Reeves ou Christopher McQuarrie, boa sorte a quem tentar ir encontrar os Hawks e os Hitchcocks dos nossos dias).
E por exemplo, agora enquanto pergunta: se todos são “autores”, se a vista alcança “autores” até à linha do horizonte, onde é que estão, de facto, os “autores”? Durante muitos anos, o “autorismo” era uma coisa que se “traficava”, uma espécie de negócio clandestino dentro do grande negócio industrial do cinema — donde, o pequeno escândalo que foi, nos anos 50, o “hitchcocko-hawksianismo” dos Cahiers du Cinéma, a defesa de cineastas hábil e harmoniosamente inseridos num sistema comercial. Aquela geração não inventou nem a palavra nem o conceito de “autor”: toda a gente reconhecia que Renoir era um autor, Dreyer era um autor, mesmo no cinema americano se reconhecia que Welles ou William Wyler eram os autores dos seus filmes; o que aquela geração fez foi ir relevar os autores para além do valor facial e superficial dos filmes, e para além do efeito de caução da assinatura. Levada ao extremo, a proposta era quase tautológica — todos são ou podem ser “autores” — mas isso foi previsto por essa geração: foi por isso que lhe chamaram a “política dos autores”, enfoque na palavra “política”, quer dizer, na palavra “escolha”.
Num cinema como encontramos hoje, maioritariamente organizado, da produção à exibição passando pela promoção nos grandes e médios festivais generalistas (que têm essa tendência para se anunciarem como desfiles de moda onde se vão ver as últimas criações do costureiro X e do costureiro Y), em torno do star power dos realizadores e da sua cotação na bolsa de valores “autorais”, num cinema onde todos são “autores”, talvez seja ainda mais necessária uma “política” do que era nos anos 50 ou 60. Ou até mais: tomar os filmes como objets trouvés, reparar na maneira como este cineasta trata a luz, como aquele trata os tempos de corte, reparar nestas pequenas coisas muito materiais em vez de deixar tudo esmagado pelo “discurso de autor”. Uma “política dos não-autores”, para extremar a coisa. É possível pensar que essa “política” estaria hoje bem mais próxima da descoberta e defesa dos Hawks e dos Hitchcocks do que a submissão ao automatismo “autorista”. Mas peguem nisto como quiserem, ou não peguem de todo.