Sobre a greve dos juízes
Há duas ordens de razões por força das quais os juízes não gozam, não podem gozar de direito à greve
1. Há duas ordens de razões por força das quais os juízes não gozam, não podem gozar de direito à greve: uma, de natureza jurídico-constitucional; outra, de responsabilidade social.
Razão jurídico-constitucional. Os juízes são titulares de órgãos de soberania, os tribunais – que estão a par do Presidente da República, da Assembleia da República e do Governo (art. 110.º da Constituição). E são-lhes conferidas garantias e estabelecidas incompatibilidades exigidas pela sua independência (art. 216.º) – uma independência não meramente técnica como a de qualquer profissional.
Razões de responsabilidade social. Administrar a justiça – ou seja, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados – é das mais nobres funções e implica uma vocação de vida como não há outra dentro do Estado.
No tempo da monarquia absoluta, era o Rei o detentor único ou supremo desse poder. Agora, em democracia, é em nome do povo que é administrada a justiça (art. 202.º, n.º 1, ainda da Constituição), o que atribui aos tribunais e, portanto, aos juízes, uma legitimação democrática (mesmo se indireta) e uma relação específica com a consciência geral da comunidade.
2. Por certo, os juízes, ao invés do Presidente da República, dos deputados e dos ministros, seguem uma carreira e constituem um corpo profissional permanente. Só que carreira singular e irredutível a qualquer outra; uma carreira na qual o poder disciplinar é participado pelos próprios e em que as classificações atendem a rigorosos critérios intelectuais, sem tocarem, minimamente, no conteúdo decisório dos arestos emitidos (art. 34.º do estatuto dos magistrados judiciais).
Também por tudo isto mal se compreende a existência de associações sindicais de juízes.
E, que não sejam os juízes a determinar as condições materiais do exercício da sua atividade, isso tão pouco os menoriza em confronto com o Presidente da República, os deputados e os ministros. Em qualquer caso, é a lei dimanada do Parlamento, assembleia representativa de todos os portugueses [arts. 147.º e 164.º, alínea n) da Constituição) e baseada no sufrágio universal (arts. 10.º, n.º 1 e 113.º, n.º 1), que prescreve as regras remuneratórias relativas a uns e outros.
3. De resto, há outras categorias em que o direito à greve é também inconcebível, e tão inconcebível que o legislador constituinte não sentiu necessidade de o explicitar: os magistrados do Ministério Público, os diplomatas, os militares. E basta pensar nos agentes das forças de segurança, que, desde 2001, alcançaram o direito de associação sindical e a quem foi recusado, de forma terminante, o direito à greve (art. 270.º, in fine).
Quer dizer: ainda que os juízes pudessem ser configurados também como trabalhadores do Estado, nem daí fluiria, como corolário forçoso, que pudessem pretender ter o direito à greve; nem se compreenderia que os agentes das forças de segurança, que podem ser chamados a executar as decisões dos juízes, não gozassem de direito à greve e dele gozassem os juízes.
Não está tanto em causa saber se os juízes preferem revestir-se da qualidade de funcionários (como aconteceu, na prática, frente à Constituição de 1933) ou da qualidade de titulares de órgãos de soberania (como resulta da atual Constituição democrática) ou se almejam por acumular as duas qualidades e os respetivos benefícios quanto saber se o Estado vai subsistir como unidade de poder e de serviço ou se vai fragmentar-se em estratos corporativos.
Uma greve dos juízes importa o risco de deslegitimar a tarefa essencial do Estado de administração da justiça e, desde logo, de deslegitimar os juízes perante a comunidade.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico