Raymond Aron e a decadência da Europa

Raymond Aron e a Guerra Fria é o título da nova obra de Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, cujo lançamento será feito esta segunda-feira no jornal PÚBLICO, em Lisboa, pelas 17h30, com apresentação do ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva. Pré-publicação.

Foto
Raymond Aron Roger-Viollet

O declínio da Europa no século XX é evidente. Entre 1914 e 1945, a segunda “Guerra dos Trinta Anos” parece confirmar a profecia de Spengler sobre a morte da civilização, ou da cultura ocidental e acelera a emergência dos novos impérios - os Estados Unidos e a União Soviética - cuja linha de demarcação estratégica divide a Europa depois da destruição do III Reich. No fim da II Guerra Mundial, nenhum dos vencedores é uma potência europeia, ou exclusivamente europeia, e a vaga de descolonização do pós-Guerra confirma de que lado da história estão as novas superpotências e completa a retracção das velhas potências imperiais, que voltam ao seu ponto de partida no fim da "era gâmica". 

Para Raymond Aron, o fim da Europa é o seu princípio. Pela primeira vez na história, os Estados europeus não podem fazer a guerra entre si, sob pena de cometerem suicídio. Em 1945, a alternativa é a união da Europa Ocidental - uma união incompleta, por definição, face à divisão da Alemanha e à separação entre a Europa Ocidental e a Europa de Leste. O fim da unidade alemã é o princípio da construção europeia, se não se perder a oportunidade histórica para reconciliar a França e a Alemanha, os “inimigos hereditários” cujas guerras destruíram a Europa.

Raymond Aron é um europeu - nenhum outro intelectual do seu tempo está igualmente à vontade na França, em Inglaterra ou na Alemanha - e nos Estados Unidos: estudou em Paris, viveu em Berlim, esteve no exílio em Londres, fala e escreve nas três línguas, trouxe a sociologia weberiana para a universidade francesa, é o único europeu convidado pelo Comité das Relações Internacionais em Nova Iorque, reconhecido como um par pela comunidade dos estrategas nucleares e cujos livros são imediatamente traduzidos e publicados em todas as línguas ocidentais e, até, circulados em samizdat na Europa de Leste.

Patriota francês, Raymond Aron é um defensor da Europa, sem ser um federalista. Na reconstrução europeia, a prioridade é a restauração dos Estados nacionais, das democracias pluralistas e da economia ocidental, indispensáveis para travar a expansão soviética, a vaga comunista e o desespero dos Europeus. A Europa nunca foi uma entidade política, nem há um “patriotismo europeu” em que se possa fundar uma “Europa europeia”. A nova Europa é, e não pode não ser, a velha Europa das nações, que tem de se reconfigurar como parte de uma “civilização atlântica”, ou de uma “união ocidental”, se não quiser ser absorvida pelo império soviético.

Contra os nacionalistas e os neutralistas, é partidário da aliança entre a França e a Grã-Bretanha, assim como da reconstituição da Alemanha e da reconciliação entre os dois velhos rivais europeus, tornada possível pelo resultado da guerra: “No dia em que todas as nações europeias foram vencidas, quando nenhuma delas pode escolher soberanamente o seu destino, o nacionalismo tornou-se um anacronismo”. No mesmo sentido, considera indispensável o alinhamento com os Estados Unidos e a intervenção norte-americana na reconstituição das democracias europeias: é partidário do Plano Marshall e da concertação entre Washington, Londres e Paris para formar a República Federal - a divisão da Alemanha dura enquanto durar a divisão da Europa. O Tratado de Bruxelas e o Pacto do Atlântico consolidam a aliança ocidental, o Plano Schuman é um passo ousado e decisivo para a reconciliação entre a França e a Alemanha: o pool do carvão e do aço não pode falhar. 

No princípio da Guerra Fria, descreve a contradição entre a fragmentação política da Europa e a necessidade de formação de um grande espaço económico como um “absurdo mortal”. Nesse contexto, admite que os Europeus possam encontrar na vontade de resistir à União Soviética o élan necessário para realizar a sua unidade na organização do Ocidente, como defende a principal potência democrática: “Quer se queira, quer não, só os Estados Unidos dão à Europa uma hipótese de realizar o seu velho sonho de unidade”. Porém, a unificação europeia no quadro das instituições do Plano Marshall não se vai realizar e o modelo alternativo, cujo artífice principal é Jean Monnet, não entusiasma Aron, que não se revê nem na visão política de uma Europa unida para separar os dois blocos, nem na estratégia que visa criar a união política como um resultado da interdependência económica entre os Estados europeus, nem no desígnio, desde logo irrealista, de entregar o comando da política europeia a uma burocracia iluminada, sem poder, nem legitimidade. 

Foto
Raymond Aron e a Guerra Fria, Carlos Gastar (Alêtheia Editores) Dr

A Comunidade Europeia de Defesa (CED) marca a separação entre Raymond Aron e os europeístas. É partidário do rearmamento da Alemanha, mas, por um lado, não concebe a formação de Forças Armadas conjuntas sem a união política da Europa dos Seis, na ausência da qual serão os Estados Unidos a comandar o Exército europeu e, por outro lado, não percebe como se pode, simultaneamente, integrar o Exército francês no Exército comum e manter as missões de soberania nos territórios ultramarinos, que mobilizam a maior parte das tropas francesas. A CED é uma péssima alternativa à adesão da República Federal à NATO e, em 1954, Aron considera que o seu fim significa o fracasso do projecto de integração comunitária.

Essa posição excessiva pode justificar a indiferença ostensiva no momento da assinatura do Tratado de Roma, mas não explica a defesa reiterada de uma arma nuclear e de uma force de frappe europeia, tão importantes para garantir a defesa da Europa Ocidental, como para assegurar o seu estatuto como o "Quarto Grande" . No mesmo sentido, defende o alargamento das Comunidades Europeias à Grã-Bretanha - sem ilusões sobre o europeísmo dos Britânicos, salvo excepção - e, mais tarde, à Grécia, a Portugal e à Espanha, na sequência das transições pós-autoritárias. Mas isso não o impede de escrever um ensaio sobre a Europa onde nunca se refere às instituições comunitárias, senão para afirmar que “a Europa dos Seis ou dos Nove não constitui uma entidade política e, até onde a vista pode alcançar, não vai constituir uma entidade política”. Em 1977, reitera a sua análise inicial: "Os Estados Unidos da Europa podiam ter sido possíveis, mas essa possibilidade desapareceu com a Comunidade Europeia de Defesa".

Na mesma altura, numa conferência sobre o sionismo, exprime com frontalidade o que considera essencial: “Pessoalmente e como intelectual, estava fascinado e convencido pela ideia europeia. Teria sido uma obra histórica incomparável criar uma nação composta pelas nações europeias. Para dizer a verdade, nunca acreditei nisso, embora, em geral, tenha militado a favor. Nunca acreditei porque sempre tive o sentimento de que o que fazia a especificidade e a originalidade da Europa era a pluralidade das nacionalidades e das soberanias estatais. Para criar uma soberania estatal incluindo a diversidade das nações seria necessária uma ameaça urgente, ou um federador todo-poderoso. ”

A sua obsessão é o futuro da Europa, sempre ameaçado pelos seus demónios, nietzschianos ou marxistas. O século XX europeu decorre sob o signo das profecias sobre o fim da civilização ocidental - Spengler, desde antes do massacre das trincheiras, Toynbee, depois da I Grande Guerra, que compara à Guerra do Peloponeso. A vertigem da catástrofe marca o momento inicial em que ele próprio reconhece a sua paixão política: a tomada do poder nazi antecipa a II Guerra Mundial, em que o genocídio dos Judeus soma à ruína material a ruína moral que completa a decadência da Europa. 

No fim da guerra, Raymond Aron reconhece a pertinência da previsão de Spengler: as hierarquias tradicionais foram destruídas, perdeu-se a ligação do homem à terra e às comunidades tradicionais, as massas urbanas, desenraizadas e gregárias, foram manipuladas pelos agitadores, os partidos tornaram-se exércitos ao serviço dos chefes, o reino do dinheiro precipitou a desagregação dos parlamentarismos que se transformaram em cesarismos. O resultado são os escombros do Atlântico ao Vístula, que confirmam o declínio da velha civilização como um facto consumado: “Le déclin de l’Europe n’est pas devant nous mais derrière nous”.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários