Pelas vinhas mais bonitas da província do Cabo
Foram apenas três dias, muito pouco tempo para tanta beleza. Ainda assim, deu para conhecer algumas das vinhas mais bonitas da província do Cabo e provar vinhos icónicos da Áfríca do Sul, um país do “Novo Mundo” do vinho mas com uma história e vinhos do “Velho Mundo”.
Nos domínios do “Senhor Chenin Blanc”
A luz já se desvanecia em tímidos raios de fogo saídos das costas das montanhas quando chegámos a Scholtzenhof, a fazenda de Ken Forrester, vindos directamente do aeroporto, oito horas de viagem entre o Dubai e a Cidade do Cabo. A vinha estava quase a florir, com lançamentos ainda pequenos mas suficientes para dar uma imagem de um verde contínuo, que atenuava a nudez da terra. É engraçado sair de um vindima no Douro e aterrar num lugar onde a produção só agora se começa a definir. Passa-se do Outono, a mais pictória das estações e fim de ciclo, para a Primavera, a época do “renascimento”, do clima mais ameno e dos dias cada vez mais tardios. Na África do Sul, a vindima só começa a partir de Fevereiro.
Na região do Cabo, há sempre montanhas em linha de vista. É uma paisagem assombrosa. Nos últimos anos, as vinhas têm subido do fundo dos vales até cotas mais altas e mais frescas. As vinhas de Ken Forrester ficam no sopé da montanha de Helderberg ("a montanha clara"), no meio da mais importante e famosa região vitivinícola da África do Sul, Stellenbosch. A False Bay, a grande baía da região do Cabo, o “golfo entre montanhas”, como lhe chamou o navegador Bartolomeu Dias, fica a apenas seis quilómetros de distância.
Scholtzenhof é uma das mais antigas fazendas da África do Sul. Pertenceu durante mais de um século e meio à família Botha, do antigo presidente da África do Sul Pieter Botha, defensor do regime do “apartheid” mas que acabou a participar na transição para a democracia. No início dos anos 1990, ainda antes da libertação de Mandela, a fazenda entrou em falência e, em 1993, foi comprada em leilão por Ken Forrester, na altura empresário da hotelaria e da restauração em Joanesburgo. Ken recuperou algumas vinhas, plantou outras e em menos de 20 anos tornou-se conhecido na África do Sul como “o senhor Chenin Blanc”.
É um homem simpático, alto, forte, com barba e cabelo brancos. Praticou râguebi e é amigo de François Pienaar, o capitão da lendária selecção sul-africana que ganhou o campeonato do mundo de râguebi de 1995 e ajudou a salvar a África do Sul do desastre. “Quando saiu o filme Invictus [sobre esse momento decisivo da história recente da África do Sul que revelou um Nelson Mandela sábio, estatuto e infinitamente tolerante], perguntei ao meu amigo François Pienaar o que ele achava e ele respondeu-me: 'Uau! Foi mesmo assim!'”, recordou Ken Forrester. Um dos seus vinhos, o T- Noble, um colheita tardia de Chenin Blanc, foi servido no 85.º aniversário de Nelson Mandela.
Provámo-lo e é um branco doce muito rico de aroma e sabor, povoado de notas meladas típicas da botrytis (podridão nobre causada por um fungo que desidrata a uva e faz concentrar os ácidos e os açúcares) mas também com a marca da Chenin Blanc (acidez alta e sugestões de marmelo, damasco, mel). A gama de Chenin Blanc de Ken Forrester é vasta e dos vinhos secos mais jovens e aromáticos aos brancos mais complexos e maduros, do espumante ao colheita tardia, está lá o carácter da casta by Ken Forrester. O que determina esse estilo é a decisão de Ken de privilegiar as baixas produções e apanhar as uvas bem maduras, algumas já com bagos contaminados pela botrytis. Os seus melhores Chenin Blanc chegam a ter 14% ou mais de álcool. “Para mim, o volume de álcool é apenas um número”, diz Ken. E é verdade que os seus vinhos mais maduros conseguem ser muito ricos e ao mesmo tempo incrivelmente equilibrados, como é o caso do fantástico The FMC, proveniente de uma vinha com 44 anos, sem aramação e com rendimentos da ordem das quatro toneladas por hectare. Um branco de barrica perfumadíssimo (fruta cítrica cristalizada, damasco, especiarias, mel), suculento e encorpado. A sigla quererá dizer “Fucking Magic Chenin” e é uma espécie de manifesto contra os anti-Chenin Blanc, a mais plantada e também a mais mal-amada variedade branca da África do Sul.
A maior parte dos 38 hectares de vinhas de Scholtzenhof está plantada com Chenin Blanc, mas Ken Forrester também produz Sauvignon Blanc, Cabernet Sauvignon, Syrah, Merlot, Grenache, Mourvédre, Cabernet Franc e Petit Verdot. Um dos seus melhores tintos, o Gypsy, junta Grenache com Syrah. É perfeito para acompanhar as carnes que Ken serve no vizinho 96 Winery Road, o restaurante do hotel The Country Guest House de que é co-proprietário.
O jantar foi lá. Ken nasceu na Zâmbia, mas a família é escocesa. Conversa puxa conversa e a dada altura falou-se do Douro, do vinho do Porto, do barão de Forrester, esse que morreu afogado no rio que conhecia melhor do que ninguém. “Morreu afogado porque levava muitos cintos. A Ferreirinha sobreviveu porque levava umas saias grandes“, recordou Ken. O "Senhor Chenin Blanc" conhece a história toda. Até já visitou a pousada com o nome de Forrester que existe em Alijó. Porquê tanto interesse? Não me diga que é?..... “Sim, sou da família do barão de Forrester. Joseph James Forrester”, confirmou.
De Boekenhoutskloof a Porseleinberg, a Cornas do Cabo
Manhã de Primavera, cheia de sol e amena. Primeira paragem numa fábrica de queijos, a Fairview, antes de seguirmos para Boekenhoutskloof, onde é produzido um dos tintos mais famosos da África do Sul, The Chocolate Block.
Da costa para o interior, abrem-se várias cordilheiras montanhosas e também uma sucessão de vales com aptidão para a viticultura. Um dos mais bonitos é o vale de Franschhoek. O nome, de origem holandesa, significa “o canto francês”. Por uma razão: foram huguenotes franceseses, protestantes fugidos das guerras religiosas em França, que a partir do final do século XVII se instalaram naquele vale e começaram a poduzir vinho com castas do seu país. Algumas das principais companhias vinícolas da África do Sul estão ali situadas e ainda mantêm os seus nomes franceses originais. O culto pela comida e e pelo vinho, também muito francês, transformaram a pequena mas lindíssima cidade de Franschhoek na “Capital Gourmet da África do Sul”.
O vale de Franschhoek é uma perdição para os amantes do vinho e da comida e também para os amantes das vinhas. Uma das fazendas mais bonitas fica no canto mais distante do vale. Chama-se Boekenhoutskloof, termo que significa a "ravina do Boekenhout". Boekenhout é uma árvore local muito usada no fabrico de móveis.
Em Boekenhoutskloof não nos sentimos bem dentro de uma grande propriedade vitícola. Sentimo-nos mais num vale remoto e selvagem com parcelas de vinha pelo meio. As montanhas em redor, o pequeno e frondoso rio que atravessa a propriedade, as manchas de bosque que separam os diversos blocos de vinha e as muitas e coloridas plantas indígenas que iluminam a paisagem fazem de Boekenhoutskloof um lugar especial, de grande biodiversidade e beleza. Para restaurar a biodiversidade primordial de Boekenhoutskloof, os seus proprietários têm vindo a desmatar manchas de pinhal e de eucaliptal, a remover plantas exóticas invasoras e a reintroduzir espécies indígenas desaparecidas. Junto ao rio, instalaram passadiços, catalogaram árvores e instalaram sugestivas esculturas de lobos, para manter viva a memória e os mitos associados à presença deste predador naquele vale (o lobo já desapareceu há muito tempo, mas nas montanhas vizinhas ainda há leopardos). É um projecto notável que nos faz olhar para os vinhos da fazenda com outros olhos e interesse.
Apesar de estabelecida em 1776, Boekenhoutskloof só começou a ser realmente conhecida pelos seus vinhos a partir de 1993, quando seis investidores resgataram aquela propriedade do abandono e, no lugar de pomares, começaram a plantar vinhas com as melhores castas francesas. Hoje, Boekenhoutskloof é um nome sonante no panorama vitivinícola da África do Sul.
Marc Kent, de 46 anos, homem afável e simpatiquísismo, é o enólogo chefe e um dos co-proprietários de Boekenhoutskloof. Aguardava-nos à entrada da sala de provas, uma sala luminosa cheia de fotos, rótulos, adereços ligados ao vinho e com uma copa apinhada de garrafas vazias de vinho de todo mundo (há algumas da marca Conceito, da enóloga e produtora duriense Rita Marques, que estagiou em Boekenhoutskloof) . Marc guarda tudo. Até camisolas de futebol. “No Mundial de Futebol da África do Sul, o vinho que a selecção espanhola escolheu foi The Chocolocate Block. A Espanha acabou por ganhar o mundial e no final o Sérgio Ramos ofereceu-me uma camisola assinada por todos os jogadores”, conta.
A sala de provas fica por cima da adega antiga, que é usada hoje para armazenar barricas e “ovos” de fermentação (pequenas e ovaladas cubas de cimento) e como recepção das uvas. Mas agora há um túnel de betão a ligá-la a uma cave nova, cuja laje exterior foi transformada num enorme e panorâmico terraço equipado com um restaurante.
A comida honra a fama de Franschhoek e os vinhos também são magníficos, em especial os brancos de Sémillon (de vinhas muito velhas) e alguns tintos de lote. São vinhos maduros e cheios de sabor. O The Chocolate Block, por exemplo, lote de Grenache, Syrah, Cabernet Sauvignon, Cinsault e Viognier, é um vinho carnudo, encorpado e fogoso, com elegantes notas florais e outras mais calorosas, como chocolate e especiarias. A moda dos vinhos menos maduros e mais ácidos não convence Marc Kent, que prefere um vinho de pH alto mas com uma boa maturação fenólica do que um vinho com uvas mal amadurecidas e cheio de acidez ou, pior, ter que fazer acidificações. Riqueza e profundidadede de paladar é o seu mantra.
Ainda assim, para responder à falta de frescor de alguns vinhos (o clima da região do Cabo é tipicamente mediterrânico), Marc começou a procurar uvas de lugares mais altos e frescos e descobriu a propriedade certa em Porseleinberg (“a montanha de porcelana”), na região vinícola de Swartland, a seara da província do Cabo. Começou por comprar uvas de apenas dez hectares, mas em 2009 acabou por adquirir a fazenda toda - 173 hectares no total. A melhor vinha está situada no ponto mais alto, em solos pobres e pedregosos de xisto, num lugar com algo de Oeste americano. É nesta vinha orgânica e de baixa produção que Boekenhoutskloof produz o seu melhor Syrah. Na verdade, talvez produza o melhor Syrah da África do Sul. O grosso das uvas vai para as marcas principais da casa e uma pequena parte é vinificada ali mesmo, em Porseleinberg, numa adega rudimentar de chapa situada mesmo no topo na montanha, entre dois vales amplos. O vinho chama-se também Porseleinberg e é o tinto melhor pontuado do país.
Callie Louw, de barbas e chapéu de basebol na cabeça, “o Che Guevara de Swartland”, como já foi apelidado, é o jovem enólogo do Porseleinberg. Vive mesmo junto à adega, isolado de tudo. Callie considera-se mais agricultor do que enólogo. Gosta tanto de produzir laranjas como vinho. Vive rodeado de animais domésticos. Com frequência, as mesmas galinhas que andam a esgravatar a vinha entram adega adentro. É um ambiente de campo, desprendido e com o seu quê de hippie e de retro. Os belíssimos rótulos do Porseleinberg, por exemplo, são impressos no local, numa impressora Heidelberg de 1940.
Esta atmosfera ajuda a construir uma imagem mais glamorosa e romântica em torno do Porseleinberg, mas o vinho é mesmo bom. Caullie deu a provar os vinhos das colheitas de 2013,2014, 2015 e 2016 (”Não liguem aos copos, estão meio sujos”, começou por avisar). Nenhum passou por barrica. “As barricas são boas para plantas de vaso”, gosta de dizer Caullie. O seu programa só contempla prensagem de cachos inteiros e fermentação e estágio em Foudres (pequenos tonéis de carvalho) e “ovos” de cimento. São vinhos de aroma mediterrânico, com muita fruta vermelha e preta suculenta, delicadas sugestões florais, especiarias, taninos sólidos e uma frescura muito mineral. Tintos de Syrah ao estilo Cornas, uma das denominações da região do Rhône, em França. Fantástico o Porseleinberg 2015, o mais consistente, elegante e fresco de todos.
Waterkloof: haverá vinha mais bonita?
Porseleinberg foi a última paragem desta apressada viagem pela região do Cabo e só não foi mais impressiva porque depois de conhecer Waterkloof é difícil ser surpreendido. Já tinha saído de Boekenhoutskloof, no dia anterior, com a ideia de que não veria nada mais bonito, mas algumas horas depois estava em Waterkloof, junto à cidade costeira de Somerset West, a cerca de 50 quilómetros da Cidade do Cabo, e tudo mudou.
A propriedade começa junto à parte alta da cidade e é necessário percorrer alguns quilómetros montanha acima até chegar ao lugar das vinhas. Paul Boutinot, o proprietário, juntou-se ao grupo e fez a viagem num camião de caixa aberta, guiado por Christiaan Loots, o responsável por aplicar em Waterkloof um extraordinário programa de conservação ambiental ligada ao vinho, premiado em 2009 como o melhor do mundo pela World Wildlife Fund (WWF).
Cerca de metade dos 100 hectares da fazenda está ocupada por uma vegetação arbustiva típica da zona do Cabo, denominada Fynbos (significa “plantas de folhas finas”), um bioma de floresta mediterrânica. É um ecossistema de elevada biodiversidade e onde florescem algumas das plantas usadas nos tratamentos dos solos e das vinhas de Waterkloof, de acordo com os preceitos biodinâmicos. A adesão à agricultura biodinâmica coincidiu com o prémio da WWF, mas só desde 2012 que a propriedade está certificada.
Em Waterkloof há espaços de compostagem, cavalos para lavrar as vinhas, vacas, patos, porcos e galinhas para estrumar as terras. E há também um apurado sentido estético, visível na extraordinária adega/restaurante construída mesmo em cima de um penhasco panorâmico sobre a False Bay e na geometria das várias parcelas de vinha, circundadas por renques de árvores. É um cenário prodigioso, dominado por montanhas e colinas com vista para o mar. Será possível haver vinhas mais bonitas?
Paul Boutinot é um homem do vinho. Foi sócio-fundador de uma importadora-distribuidora de vinhos em Inglaterra, a Boutinot, com mais de mil vinhos no portefólio e cerca de 150 produtores exclusivos de todo o mundo. A Boutinot também tinha (tem) algumas vinhas. Waterkloof era uma delas. A propriedade foi descoberta por Paul após uma década a procurar por todo o mundo o lugar certo para fazer a vinha dos seus sonhos. Há uns anos, Paul vendeu a sua participação na empresa mas ficou com Waterkloof - e mudou-se para a África do Sul.
Na visita guiada pelas vinhas Paul parou em duas parcelas e, mesmo em cima do camião, serviu o vinho produzido em cada uma delas. Um tinto de Syrah e um branco de Sauvignon Blanc. Dois grandes vinhos, em especial o Waterkloof Sauvignon Blanc da colheita de 2016, um daqueles brancos que nos deixam com pele de galinha, de emoção.
Podia ser do momento, da experiência de provar numa caixa de um camião, no meio de vinhas rodeadas de montanhas e mar. Mas voltámos a provar o vinho ao jantar e a impressão foi a mesma. “Conheço tudo o que se faz no mundo e com o nível deste só há dois ou três Sauvignon”, comentava Paul, sem falsas modéstias. Paul não exagera. É um daqueles vinhos puríssimos, que se desdobram em camadas e que vão crescendo em boca e acendendo todas as nossas campainhas sensoriais.
Waterkloof produz outros vinhos notáveis. Dania Barnat, a enóloga, deu-nos a provar alguns tintos de Syrah, Cabernet Sauvignon e Mourvèdre, ainda em barrica, que são deliciosos. Mas o que perdurará para sempre na nossa memória será “aquele” Sauvignon Blanc. O seu segredo, segundo Paul Boutinot, está no solo: “Temos vários blocos de Sauvignon Blanc e só um consegue dar aquele vinho." É uma parcela que está situada na parte mais alta da propriedade, de frente para a baía e, por isso, mais exposta aos ventos marítimos e também menos produtiva.
Há grandes vinhos que nascem em lugares improváveis e pouco vistosos. Este Sauvignon Blanc, pelo contrário, é um vinho perfeito que nasce num lugar perfeito. Prová-lo e conhecer a sua origem justifica por si só uma viagem. Um dia vou querer voltar a Waterkloof.
A Fugas viajou a convite da Emirates