Eram uma vez 3% e 60%...
Esta regra cega não é sensível nem à conjuntura económica nem ao contexto de cada país. Com os resultados que todos conhecemos.
Agora que, entre IVA e touradas, a aprovação final do OE 2019 está por dias, faço uma digressão histórica por dois números-fétiche das regras orçamentais europeias.
Há quem fale dos 3% de défice e dos 60% da dívida pública (em relação ao PIB) como se estivéssemos perante um dogma de finanças públicas, se é que alguma vez nisso pensaram. Inseridos no Pacto de Estabilidade, reafirmados no chamado Tratado Orçamental da União Europeia, estamos, aparentemente, perante números inamovíveis, seja qual for o país, o momento e as circunstâncias. Porquê o limite de 3% de défice e não um outro? Qual o carácter científico ou empírico de tais limites? Como se chegou a tão indiscutida valoração?
Creio que a maioria dos governantes europeus não saberão por que razão são estes e não outros os valores da fronteira entre o cumprimento e o afrontamento das regras. O que não deixa de ser um mistério perante tanta análise, tanta discussão, tanta proclamação em torno dos famosos 3% e 60%.
Caricaturalmente, muita gente responderá à pergunta de “porquê os 3%?”, como uma criança responde a muitas interrogações: “porque sim!”.
Neste caso, a paternidade dos números é francesa. A história da gestação e parto dos 3% aconteceu quase por acaso, numa gravidez não sei se desejada, mas, no fim, abraçada.
No já longínquo 1981, um alto funcionário francês da Direcção do Orçamento, de seu nome Guy Abeille, foi encarregado de propor um critério e uma bitola fáceis de entender para que o então Presidente François Mitterrand pudesse contrapor limites orçamentais aos ministros mais gastadores. Ao que se sabe, foi um pedido informal e não escrito.
Em 2012, o tal senhor Abeille deu uma entrevista ao jornal Parisien, onde descreveu alguns aspectos curiosos e insólitos daquela encomenda. Mitterrand pediu-lhe para, com inventividade, e sagacidade, alcançar um número adequado que servisse aqueles propósitos e que “parecesse de economia” (sic). Ao jornal, o pai dos 3% resumiu:” Cheguei a 3% em menos de uma hora num canto de uma mesa e sem nenhuma reflexão teórica.”
Primeiro objectivo: tinha de ser um número inteiro, redondo, nada de vírgulas e de fracções. Perante o valor nominal do défice francês naquela época, logo se eliminou a ideia de 1%, impensável de se atingir, e de 2%, que era demasiado constritivo. Então, por que não 3%? “Um bom número que até faz pensar na Santíssima Trindade” (incluindo então o Espírito Santo, direi agora), relatou o alto funcionário. E rematou: “Uma pequena semente tornou-se num campo cultivado, talvez de OGM” (organismos geneticamente modificados). Contou, ainda, que o então ministro francês das Finanças Laurent Fabius preferia falar de um défice de 2,6%, mas que o Presidente Mitterrand já não largou o número redondinho de 3%, garantindo-lhe a devida legitimidade política e institucional.
Assim nasceu a bitola 3% crescentemente tornada sacrossanta, indiscutida, solidificada, “tecnicamente” consolidada. De França, e de TGV, viajou para Bruxelas, onde foi adoptada e abençoada pelos líderes europeus. E não era coisa para menos: não vinha de um qualquer pobretana, insignificante ou sulista Estado-membro. Nada disso, vinha da imperial França, e era coisa de especialistas de primeira água!
Estabilizada a cifra de 3% do défice, que limite máximo aceitável estabelecer, então, para a dívida pública, pensaram os tratadistas europeus? Iluminados, raciocinaram linear e fulminantemente: se o défice for de 3%, que valor em relação ao PIB deve ter a dívida para se manter inalterável, tendo em conta dois macro pressupostos: crescimento real do PIB de 3% e taxa de inflação de 2%. Feitos os cálculos, ei-los diante do segundo número mágico: 60%.
Abaixo de 60%, aqueles dois macro pressupostos levariam a um aumento do peso da dívida pública. Por exemplo, se esta fosse de 50%, aumentaria para 50,5%. Ou, de outro modo, para se manterem os 50%, o défice teria de ser inferior a 3% (neste caso, 2,5%) ou o crescimento nominal do PIB (aumento real + inflação) de 6% e não de 5%.
Reparará o leitor que os pressupostos raramente se verificaram neste século, sobretudo o do crescimento real do PIB de 3%. Assim se percebe como esta regra imutável e cega não é sensível nem à conjuntura económica (e social), nem ao contexto de cada país. Com os resultados que todos conhecemos.
Nem sei se foi por conhecer (ou desconhecer) esta génese algo cabalística que, há seis anos (16.11.2012), o então deputado socialista Pedro Nuno Santos decretou, alto e bom som, que “estou a marimbar-me que nos chamem irresponsáveis. Temos uma bomba atómica que podemos usar na cara dos alemães e franceses, que é simplesmente não pagarmos a dívida. Ou eles se põem finos ou nós não pagamos”. E acrescentou “se não a pagarmos [...] as pernas dos banqueiros alemães até tremem”. Há pouco tempo, porém, e já investido como prudente governante, afirmou que o “debate da reestruturação da dívida hoje não faz sentido”. Eis um exemplo esplendoroso dos milagres que os misteriosos 3 e 60% são capazes de produzir.