“A esquerda comeu o meu trabalho de casa”
Por mais que haja quem na direita queira navegar nas vagas do trumpismo e do bolsonarismo acreditando que isso lhes trará sucessos eleitorais e políticos, a verdade é que atrás de tempos vêm tempos.
Cresci a ouvir a direita defender noções de responsabilidade pessoal. Se quiser ser justo, essa era até em geral a parte mais forte do argumentário da direita quando eu era adolescente e jovem adulto. Ao passo que a esquerda tendia a enfatizar mais os condicionalismos económicos e sociais na conformação da vida de uma pessoa, a direita interpunha que essa pessoa tinha obrigação — independentemente dos condicionalismos — de saber a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso.
Como habitual, nem esquerda nem direita têm o monopólio deste tipo de argumentos. Há maneiras de esquerda de se ser pela responsabilidade cívica pessoal — noção que está na base da luta iluminista contra os privilégios de que gozavam os aristocratas — e, por isso mesmo, há como reconhecer que a direita pode ter adotado argumentos que têm razão de ser, embora por razões e com objetivos políticos diferentes dos da esquerda. Em conclusão, basta ter um pouco de honestidade intelectual e abertura de espírito para se reconhecer que, mesmo não sendo o argumento da responsabilidade pessoal exclusivo da direita nem passível de ser defendido apenas por “razões de direita”, ele era um dos argumentos mais respeitáveis no discurso da direita de há umas décadas.
Claro, podemos contrapor que o argumento não era sempre aplicado de forma consistente ou até sincera. Em países como os EUA, a direita especializou-se em usar o argumento da responsabilidade pessoal para privar os pobres de acessos a cuidados de saúde, por exemplo, mas esqueceu-se estrategicamente desse argumento quando se tratou de usar o perdão presidencial para limpar do cadastro de milionários o financiamento ilegal de partidos, por exemplo. A hipocrisia e inconsistência dizem-nos muito, é claro, sobre as pessoas que usam o argumento de forma hipócrita e inconsistente, mas não contraria o argumento em si. Pelo contrário, é porque ele é forte e apela ao senso comum que o argumento da responsabilidade pessoal aguenta com tanta inconsistência e hipocrisia exercida em seu nome ou em cima dele.
Vem isto a propósito de quê? É que as coisas mudaram substancialmente nos últimos dois anos e agora há uma direita que decidiu pura e simplesmente jogar borda fora, no que lhes diz respeito, o argumento da responsabilidade pessoal. Tal como o estudante cábula que não entrega os seus deveres e inventa que “o cão comeu os meus trabalhos de casa”, há agora uma parcela da direita que nenhuma responsabilidade política aceita ou reconhece. Para essa direita, tudo o que a direita fizer de mal não é culpa da direita. Foi “a esquerda que comeu o meu trabalho de casa”. A direita estado-unidense escolhe em eleições primárias um burlão de quinta categoria? A culpa é do “politicamente correto” nas universidades americanas. A direita brasileira elege um tipo que acha que a ditadura militar matou pouco em vez de torturar? A culpa é de quem disse que isso era “fascista”. É preciso um extremo cuidado com as palavras, exceto quando é a direita a usá-las: aí já os Trumps e Bolsonaros não “queriam dizer aquilo que se lhes atribui”, foram “descontextualizados” ou “irónicos”.
A auto-desresponsabilização política da direita — que é, na raiz de tudo, uma desresponsabilização moral e pessoal — tem pelo menos três consequências.
A primeira é que uma parte da direita intelectual já vai desprezando abertamente os limites ideológicos do pós-guerra. Basta passear um pouco pelos fóruns e publicações da direita europeia e americana para ver defesas cada vez mais abertas do racismo, do nacionalismo agressivo e do autoritarismo, com a vantagem acrescida — para os seus defensores — de que eles não têm culpa nem responsabilidade nenhuma por esse regresso ao esgoto moral que nos deu duas guerras no século passado. Que nada, eles só escrevem o que escrevem “por culpa da esquerda e do politicamente correto”.
A segunda consequência procede da primeira. Precisamente porque as coisas estão como estão, não é a esquerda por si só que vai conseguir pôr estes demónios de volta na garrafa. A esquerda e a direita têm obrigação de falar com todos, mas não se pode garantir que outro campo nos oiça. É a direita que ainda não perdeu a bússola moral — seja ou não minoritária — que tem obrigação de denunciar e deslegitimar os autores da deriva no seu próprio campo político. Essa direita que ainda não perdeu a bússola moral deve salientar no seu próprio campo político que as defesas de Trump, Bolsonaro e Orbán já não têm nada a ver com a direita conservadora, liberal ou democrata-cristã democrata, passe o pleonasmo, mas que neste momento são puro reacionarismo agressivo à maneira de finais do século XIX e princípios do XX, quando não é pior.
A terceira consequência é que, por mais que haja quem na direita queira navegar nas vagas do trumpismo e do bolsonarismo acreditando que isso lhes trará sucessos eleitorais e políticos, a verdade é que atrás de tempos vêm tempos. Os pequenos imitadores de ditador hão-de ir na voragem do tempo e da sua loucura mais tarde ou mais cedo, e arrastar na queda todos os que os apoiaram ou justificaram. Talvez só quando isso acontecer a direita compreenda que se foi afastando do senso comum moral e que não fez o trabalho de casa de acompanhar a evolução da sociedade e do mundo. Quando isso acontecer, não venham dizer que a culpa foi da esquerda.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
N.D.: Um erro de edição levou a que este artigo de Rui Tavares tivesse sido originalmente publicado com um parágrafo truncado, situação que já corrigimos. Ao autor e aos leitores, as nossas desculpas.