A Cidadania no Parlamento
Salvo algum milagre pré-natalício, esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos está destinada a ser “queimada” antes de chegar a debate no Parlamento.
O presente ano lectivo iniciou-se com mais uma reforma curricular, apresentada com uma retórica que sublinha a importância de reforçar as competências associadas à formação dos futuros cidadãos do século XXI, sendo traçado um “perfil” onde abundam as referências à “cidadania”, à “participação” e aos “valores” que devem ser promovidos nos alunos. Ousa-se mesmo entrar pelo domínio da ética, declarando-se que “os valores são, assim, entendidos como os elementos e as características éticas, expressos através da forma como as pessoas atuam e justificam o seu modo de estar e agir” (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, 2017, p. 9).
Foi mesmo criada uma nova disciplina no currículo com a designação de “Cidadania e Desenvolvimento” com temas de abordagem obrigatória como “Instituições e participação democrática” e a orientação explícita de que “os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas” (Cidadania e Desenvolvimento, DGE, p. 4). Os professores têm procurado fazê-lo, não como peças numa engrenagem de doutrinação forçada, mas como cidadãos que desejam que os seus alunos se transformem em indivíduos conscientes, informados, participativos e mobilizados para o aprofundamento de uma sociedade que não comprometa os princípios às conveniências ou confunda interesses particulares com um “bem comum” definido em gabinetes. Sempre que possível, gosto, enquanto professor, de os introduzir pelo exemplo no que é a vida democrática e o respeito pelos outros, demonstrando o que enuncio.
O ano lectivo também se iniciou com mais uma fase do longo conflito entre a classe docente e o poder político em torno da reivindicação da consideração de todo o tempo de serviço prestado por educadores e professores para a sua progressão na carreira de acordo com as regras do seu estatuto profissional. Em paralelo a outras formas de luta, patrocinadas pelas organizações sindicais, um grupo de professores de que faço parte decidiu, numa lógica de participação cívica activa, apresentar uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) à Assembleia da República, visando a votação em plenário de uma proposta de lei destinada à “consideração integral do tempo de serviço docente prestado durante as suspensões de contagem anteriores a 2018, para efeitos de progressão e valorização remuneratória”. Cumprindo as exigências legais, sem qualquer apoio organizacional das associações sindicais, essa iniciativa legislativa deu entrada nos serviços do Parlamento com mais de 20.500 assinaturas na plataforma digital existente para o efeito, no dia 12 de Julho de 2018, após diversas atribulações resultantes da incapacidade da plataforma em causa se manter em funcionamento contínuo e inviabilizar o completamento de muitas assinaturas. Ao mesmo tempo que a iniciativa se transformava no Projecto de Lei 944/XIII, foi iniciado um processo de verificação da autenticidade das assinaturas por parte do Instituto de Registos e Notariado, através de um método de amostra, cujos critérios não foram previamente enviados à Comissão. Ao longo desse processo, foram detectadas irregularidades como a grafia do nome inserido, espaços mal colocados no número do cartão de cidadão ou no do cartão de eleitor, entre outras falhas mais relevantes. Extrapolando os casos encontrados, sem que fosse dada a possibilidade de correcção dos dados apresentados como irregulares, foram solicitadas mais cerca de 3500 assinaturas à Comissão Representativa, a apresentar em 90 dias, a partir de 8 de Agosto.
Mais confuso, no dia 11 de Outubro de 2018, a Divisão de Apoio ao Plenário contactou os elementos da Comissão Representativa comunicando que “a Lei n.º 47/2018, de 13 de agosto, procedeu a alterações ao regime jurídico do recenseamento eleitoral, aprovado pela Lei n.º 13/99, de 22 de março, abolindo o número de eleitor”, pelo que “vimos por este meio informar que, na identificação dos proponentes que subscrevem a iniciativa acima mencionada, este elemento não carece de ser mencionado”. Ou seja, um dos elementos usados para não aceitar um número indeterminado de assinaturas deixava de ser considerado. Sem que fosse dada à Comissão Representativa a possibilidade de saber quantas, quais ou sequer de proceder à correcção dos erros existentes, mas pura e simplesmente de apresentar mais assinaturas. O que foi feito dentro do prazo, recorrendo a novas assinaturas digitais e outras em papel, atingindo-se agora um total a rondar as 21.800 assinaturas. Ainda dentro do prazo em que está a ser discutido o orçamento para 2019. Ao longo de todos estes meses foram estabelecidos múltiplos contactos com vários serviços do Parlamento e com os grupos parlamentares, constatando-se alguma impreparação dos primeiros para lidar com esta nova modalidade de participação dos cidadãos no processo legislativo e um quase total desconhecimento dos procedimentos a ultrapassar por parte dos segundos.
Pessoalmente, como cidadão e professor, sinto orgulho no trabalho desenvolvido pela Comissão Representativa desta ILC e por todos os que com ela colaboraram, independentemente do destino que venha a ter nas próximas semanas. Claro que cedo se percebeu que o interesse dos grupos parlamentares foi, na melhor das hipóteses, de mera cortesia e “compreensão” para com o desagrado e “insatisfação” dos docentes nesta questão, mas sempre sem qualquer compromisso em apoiar esta ILC com o seu voto, no caso de ir a plenário. Claro que já se percebeu que os serviços têm feito todos os possíveis por não agilizar o processo, por requerer a correcção e rigor no mais pequeno detalhe, da maiúscula em falta ao hífen mal colocado, e o ir bloqueando, até se esgotar o tempo útil da sua validade, pois o projecto de lei deixará de o ser quando 2018 terminar.
Pessoalmente, estou consciente de que, salvo algum milagre pré-natalício, esta ILC, a primeira a ser apresentada nos moldes actuais, está destinada a ser “queimada” antes de chegar a debate no Parlamento. Mas terá cumprido parte dos seus objectivos: demonstrar que é possível aos cidadãos mobilizarem-se por uma causa, participando no processo legislativo de acordo com as regras legisladas em democracia, apesar das suas imperfeições; e abrir o caminho para outras iniciativas deste tipo. Como professor, sinto-me duplamente satisfeito por ter ido além da enunciação do que deve ser uma Cidadania Activa. Sinto-me mais capacitado para ensinar aos meus alunos as vantagens e limites da “participação democrática” para além da formalidade quadrienal do voto.
Terei mais dificuldades em explicar-lhes que o mesmo Parlamento que exige todos os rigores a uma iniciativa de cidadãos seja complacente com a conduta de deputados que partilham palavras-passe para assinalar presenças virtuais ou declarações absolutamente inaceitáveis de “representantes do povo” que se julgam acima de qualquer escrutínio e ajudam à progressiva erosão, com a sua acção, do sistema democrático de que deveriam ser os maiores defensores.