Um close-up sobre Mike Leigh
Segredos e Mentiras inaugura hoje, no primeiro dia do Lisbon & Sintra Film Festival, o ciclo, uma dúzia de títulos, que o Leffest programou sobre a obra de um cineasta que sempre nos confrontou com a nossa turbulência íntima. Eis um close up sobre Mike Leigh, o seu processo criativo e um percurso que usou o teatro, sob influência de Pinter ou Beckett, para chegar ao cinema.
No Soho londrino, em Novembro de 1994, um crítico de teatro seguiu o trabalho de um realizador e da sua equipa. Viu o cineasta fazer as apresentações dos actores, nome a nome, todos sentados em círculo, e depois ir a algo que se anunciava como essencial: “Não faço ideia do que acabaremos por fazer”. Sabia que seria uma história com “princípio, meio e fim”, continuou o cineasta, mas isso iria ser inventado em 18 semanas de ensaios. Quando se abrisse o período de 13 semanas de rodagem, estariam todos tão ensopados no mundo que tinham estado a inventar nos três meses anteriores que sobraria espaço para então se inventar o cinema.
O realizador prometia “a mad, wild scream of time”. Mas com regras rígidas: trabalharia com os intérpretes individualmente, desenvolvendo personagens baseadas, em primeiro lugar, em alguém que o actor conhecesse — inventar-se-iam nesse momento as circunstâncias e possibilidades narrativas. Cada intérprete só saberia de si, isto é, da sua personagem e daquilo que a personagem poderia saber em determinado ponto da história — sabendo o realizador de tudo e de todos, porque lhe cabe a manipulação do processo global. As personagens só se poderiam encontrar durante os ensaios, em situações permitidas pelo realizador. O segredo, é essa a justificação, garante a cada personagem ser o centro do mundo — o actor fica livre de qualquer interferência exterior ou do saber que relativiza.
E assim um argumento vai sendo escrito, alterado e reescrito, e, chegados à rodagem, não há espaço para improvisar.
Isto passou-se no Soho em 1994, no início dos trabalhos de um filme que tinha actores, mas não tinha argumento nem título para além de um Untitled 95 — ao crítico, cheirou-lhe que iria ser uma comédia.
Foi com a alvorada do que seria Segredos e Mentiras/Secrets and Lies que esse crítico, Michael Coveney, começou The World According to Mike Leigh, o livro que em 1996 dedicou ao realizador e que continua hoje, embora faltando-lhe o trabalho do cineasta britânico nos últimos dez anos, a ser revelador das idiossincrasias, da britishness, de um criador, do seu tão falado, e apesar de tudo indecifrável, método de criação colectiva, e que ilumina um percurso que usou o teatro, e a influência e o trabalho de gente como Harold Pinter e Samuel Beckett, para chegar ao cinema — para Leigh, não há diferenças de classe entre os filmes para o grande e pequeno ecrã, para onde fez, aliás, alguns dos seus trabalhos mais influentes e icónicos.
Foi sempre instável o lugar de Mike Leigh. E ameaçado de instabilidade, apesar das consagrações (prémios em Locarno, Cannes e Veneza), com as críticas a uma suposta condescendência face às personagens, ao aproveitamento da criação dos intérpretes e, até, à manifestação de um modelo televisivo.
A verdade é que a obra de Leigh, nascido em 1943 em Salford, na Grande Manchester, coloca o “realismo”, coisa tão querida e extensão tão natural do cinema e da televisão britânicos, em territórios críticos. Para já, porque ameaça o naturalismo. Ponha-se lado a lado um filme dele e um filme do compatriota Ken Loach. Neste, a acção é uma agenda determinada, nada escondida, aliás, de onde saem amáveis e por vezes sublimes criaturas. No caso de Leigh, as personagens são o mundo. E as palavras e os gestos uma zona de abismo — são importantes para a comunicação, mas nunca são suficientes para a comunicação. Isso faz toda a narrativa.
Veja-se Segredos e Mentiras, Palma de Ouro de Cannes em 1996 e título que inaugura hoje — Monumental 1, 22h (repete-se sábado 17, 19h30, Centro Cultural Olga Cadaval Auditório Acácio Barreiros de Sintra) — o ciclo de uma dúzia de filmes que programa o Lisbon & Sintra Film Festival Não é certo que se confirme a comédia que Michael Coveney viu. Podia falar-se até em melodrama. Mas não é certo que nesta história de uma filha que procura a sua mãe se sublinhe qualquer género. É um momento apoteótico da obra e da visibilidade de um cineasta, um espectáculo, com o seu quê de (auto)irónico, a partir das possibilidades catárticas de um método. No percurso, confronta-nos. Como um espelho que amplia, deforma expectativas — sempre a sensação de um close up a que ninguém escapa.
Mas o ciclo, com todas as lacunas que tem, permite um contraponto: a impossibilidade de catarse como a decisão límpida dos inícios de um cineasta: em Bleak Moments, primeira longa-metragem, com prémio em Locarno, tudo estava já decidido sobre o cinema de Leigh e sobre as dificuldades de comunicação — Monumental 2, dom., 18, às 18h30; Centro Cultural Olga Cadaval Acácio Barreiros, Dom. 25, às 15h).
Pena, por isso, porque seria uma rima para esta contenção, que o ciclo não contemple a jóia Meantime, rodado para televisão, em plena era Thatcher, em 1983, dando papéis de skinheads aos jovens Tim Roth e Gary Oldman. Foi o filme que fez passar o seu nome das páginas de cinema para as da pop, para as páginas das “bíblias” de música, como o New Musical Express, ou das bíblias tout court, como a revista The Face — a malta dos Blur e dos Suede não se esqueceu do dia em que viu esse filme na TV.
Meantime integra uma trilogia política (Four Days in July, ausente do ciclo, e High Hopes — Medeia Monumental 2, Dom., 18, às 16h). É dessas catacumbas, como sobrevivente de um apocalipse, que sai a personagem de Johnny de Naked/Nu (Monumental 4, 3.ª, 20, às 18h30), outro dos filmes que fazem uma carreira (melhor realizador em Cannes e melhor actor, prémio para David Thewliss). Hoje, é mais claro que a personagem do culto e misógino Johhny, do niilista e sôfrego Johnny, do profeta Johnny, é menos uma personagem do que o espírito de um tempo. E que o “realismo”, pegando em Beckett e no filme de terror, se atirou para o existencialismo e para a escatologia, pondo-se a avistar o fim.
E que dizer de Topsy Turvy (Monumental 4, Terça 20, às 15h30)? Que, começando com uma provocação — fazer filme de época —, Mike Leigh concretiza o seu filme mais festivo e simultaneamente mais tumular. Retrato de uma dupla da época vitoriana (o libretista Gilbert e o compositor Sullivan, autores de óperas cómicas), é um filme sobre a claustrofobia social e um retrato implacável do casal como lugar de crueldade e atrofiamento — sequências finais.
Com os filmes de época, aliás, este “pintor” do nosso tempo faz dos seus objectos mais rigorosos e surpreendentes (conferir ainda com o Leão de Ouro de Veneza Vera Drake — Monumental 4, Quinta 22, às 18h). Pena que nos seja vedado o último filme do cineasta, Peterloo, que tem no título o massacre de Manchester, quando, a 16 Agosto de 1819, a cavalaria carregou sobre uma multidão, estimada em 60 mil a 80 mil pessoas, que se juntara de forma pacífica em St Peter’s Field para exigir a reforma do sistema de representação parlamentar e melhoria das condições de vida. (Dizem-nos do LEFFEST que a Amazon, produtora, não tendo ainda estratégia comercial para Peterloo em Portugal, não permitiu a inclusão no ciclo)
É — a sua singularidade enquanto “filme histórico” — menos um filme sobre esse acontecimento do que um registo do movimento de uma sociedade em direcção à catástrofe. É um documento sobre a pintura, a literatura, a comida e a vida privada inglesa do século XIX (experimenta-se a dimensão monumental da pesquisa, experimenta-se como um documentário ) em que Leigh, para pintar o colectivo, apaga de forma intransigente as ênfases melodramáticas. Não dá hipótese ao pitoresco. Assim se ilumina no cineasta o historiador que tem sido, talvez. Preparados para o close up.
Vamos começar por Bleak Moments, 1971? Há aquela sequência, quando Peter (Eric Allan) e Sylvia (Anne Raitt) pretendem comunicar, ela junto à porta, dentro de casa, ele junto à porta, fora de casa, silêncios, gestos, o que não sabem dizer nem fazer. Logo na sua primeira longa, a sensação de que uma personagem, a forma como fala ou gesticula, é a narrativa. Logo ao primeiro filme soube exactamente o que queria. O seu cinema estava “conseguido”. Como chegou a esta pureza e clareza de intenções?
Uma óptima e complicada pergunta. Há várias coisas. Primeiro, Bleak Moments é muito um retrato, uma evocação, do horroroso mundo suburbano em que cresci. De certa forma, isso que encontra no filme vem da minha experiência pessoal.
A segunda coisa é que a minha inclinação natural, desde muito jovem, consistia em olhar para as pessoas e para a forma como elas se comportavam. Isso, para mim, sempre foi intrinsecamente interessante. E é sobre isso que está a falar: a narrativa é as pessoas a comportarem-se tal como são.
Por outro lado, quando fiz Bleak Moments, em 1971, depois de um período formativo nos anos 60, estava sob a influência de Harold Pinter e Samuel Beckett, e acho que eles, para além de uma série de influências cinematográficas, têm a ver com o que me está a perguntar.
E depois tinha já desenvolvido uma forma particular de trabalho — em peças de teatro — com o objectivo de criar personagens tridimensionais. A intriga existe sempre em função de como as personagens se comportam. Cheguei a esse ponto de forma orgânica e natural, pela forma como já tinha feito o teatro acontecer: um trabalho de colaboração com os actores de forma tridimensional. Faz sentido?
Sim, faz, entraremos pelo método com os actores mais tarde. Ainda sobre a narrativa: a sensação de que podemos ficar uma hora ou duas com as personagens — autonomizando-se elas, a forma como falam, o que dizem, de um qualquer desígnio da acção — é algo de muito forte. Estamos perto da imensidão do comportamento humano.
É isso.
Eis a forma como monta uma sequência de convívio de um grupo em casa de Sylvia: vários close ups, como se as personagens fossem dizer algo mas não dizem nada, a não acção como acção, o acontecimento é o que não acontece...
Tem toda a razão. É como uma montagem épica. Já viu Peterloo [2018]? Essa sequência de que fala é o antepassado da sequência do massacre em Peterloo.
Como disse, teve um período formativo nos anos 60: contracultura, guerra do Vietname, assassinato dos Kennedy, luta pelos direitos cívicos. Mas no seu trabalho a turbulência é, desde o início, o íntimo. Sentia-se de fora?
Sim. O que estava na moda eram coisas muito experimentais, e tudo em maiúsculas, em que a experiência era exibida, a obscenidade era exibida, a malandrice era exibida, o processo era exibido. Era tudo muito interessante, mas não me interessava. Por isso falei em Pinter e Beckett. O meu interesse eram as vidas reais, embora olhadas de forma não naturalista — uma realidade intensificada, é isso o que faço, e é disso que se trata em Bleak Moments.
Quando lhe falei em “pureza”, estava a pensar no cinema mudo. Por paradoxal que pareça, há momentos em que Bleak Moments parece um filme mudo — com som...
Gosto que diga isso. Mas que isso não impeça as pessoas de darem atenção ao que as personagens dizem e como dizem.
É verdade, de tal maneira que as vozes, o sotaque, os esgares, compõem uma textura nos filmes que fica à beira de se autonomizar como performance...
Isso é assim porque é assim que são as pessoas. Não é, de modo algum, uma afectação artística.
Quem veja uma fotografia da Sylvia de Bleak Moments pode julgar tratar-se de um filme de época: o penteado, a atmosfera que se desprende do rosto, podiam pertencer a uma adaptação de Jane Austen ou Emily Brontë. É Londres 1971, mas a personagem continua a parecer uma visita do romance romântico ou gótico. O filme acaba com ela ao piano e tudo. Porquê?
Na verdade, aquele estilo estava na moda em certas jovens na altura. E, se reparar, há romances de Jane Austen nas prateleiras. Mas, tirando isso, uma das ironias e conceitos do filme é o contraste entre as pessoas, o contraste entre ela e as outras personagens, a tensão, tensão de cultura e de psicologia.
A propósito, a cena em que Peter pergunta a Sylvia se ela leu Marshall McLuhan [filósofo, teórico da comunicação, 1911-1980]. Peter pergunta-lhe isso e se Sylvia prefere televisão ou rádio — ela prefere rádio — e os dois falam sobre as conversas e os jogos nas relações. Há um momento em que ela, derrubando a jogada que se instalou, diz a Peter: “Despe as calças”. Há algo nela que é...
... anárquico.
E essencial, verdadeiro...
Penso que se ela não estivesse constrangida pela sua situação, se não tivesse que viver com a irmã deficiente, seria uma rebelde. Penso que ela era hip, mas teve de suprimir isso. Por isso a forma como acha Peter, no fim, um chato. Ele é que é o rapaz antiquado.
Esta conversa sobre Marshall McLuhan acontece no filme seis anos antes de um célebre gag sobre Marshall McLuhan, com aparição do próprio, no Annie Hall de Woody Allen. Curiosidade: como se relaciona com o cinema de Woody Allen?
[risos] Coloca-me numa situação difícil. Isto porque se acho Radio Days/Os Dias da Rádio [1987] um grande filme, é um dos meus favoritos, acho outros verdadeiramente horríveis. Alguns estão bem, mas para outros, que são incrivelmente superficiais, não consigo sentir mais do que desprezo. Se tiver que tomar uma posição, escolheria as enormes virtudes de Radio Days, um filme belíssimo.
Em 1988 fez High Hopes, em plena era Thatcher. Há a personagem de uma velha senhora, Mrs. Bender (Edna Doré) — há muitas vezes, já agora, uma inquietação sobre envelhecer nos seus filmes. Embora não seja a personagem principal — o centro é um jovem casal de esquerda, Cyril (Philip Davis) e Shirley (Ruth Sheen) —, High Hopes tem o ponto de vista do desgosto do que está a acontecer na sociedade britânica, do que está a ser destruído na vida britânica.
É verdade.
Fale-me desse tempo, em que não fez só High Hopes, em que fez para televisão Meantime...
... sim, fiz quatro ou cinco filmes entre Bleak Moments e High Hopes, para televisão, mas que considero todos meus filmes, iguais aos outros, e que inclui Nuts in May (1976), Meantime (1983), Four Days in July (1985). Percebi mais tarde que Meantime, Four Days in July e High Hopes eram uma trilogia política, embora isso não tivesse sido consciente. Todos os meus filmes são de alguma forma políticos, pois falam sobre como vivemos as nossas vidas. Meantime foi motivado pelos sentimentos sobre Thatcher, o desemprego e isso tudo. Four Days in July é uma reflexão sobre a Irlanda do Norte. Mas quando se chega a High Hopes... não é um filme em que a política seja assunto, como em Peterloo. É um filme sobre a frustração de pessoas que querem ser motivadas politicamente mas ficam imobilizadas pela inércia. Em vez de actuarem com os instintos, falam apenas sobre as coisas.
O mundo a que faz referência na sua pergunta é aquele em que as zonas proletárias de Londres foram gentrificadas, com os resultados sociais que isso acarreta. Vemos a irmã [Valerie] de uma das personagens e o seu cunhado representando os novos-ricos vulgares com as suas aspirações materiais e as pessoas que se mudaram para o apartamento do lado, um casal upper class [os Boothe-Braine, interpretados por Lesley Manville e David Bamber] que transportam para ali a sua riqueza e vantagens.
Foi aí que surgiram críticas a acusarem-no de condescendência ou paternalismo no olhar sobre as personagens. Essas críticas resultam também, penso, do que se entende por “realismo” no seu cinema. Como é que recebe essas críticas, que acompanham depois toda a sua obra?
De forma geral, acho-as bastante desagradáveis. Mas quando se aplicam a High Hopes, e apenas a High Hopes, penso que é preciso fazer mais do que as rejeitar liminarmente. Rejeito-as quando se trata de contrapor isso o todo o meu restante trabalho, mas com High Hopes deliberadamente coloquei uma aresta de caricatura nas personagens da irmã e do cunhado e, de certa forma, no senhor e na senhora Boothe-Braine. O que não faço a Cyril e a Shirley nem à velha senhora. É uma forma de ilusionismo artístico — se fosse pintura e ilustração, tratar-se-ia de carregar mais nas cores numa certa área. É deliberado. É uma questão de perspectiva no filme: Cyril e Shirley são, se quiser, mais naturalistas e as outras personagens mais exacerbadas. Mas isso já faz parte da natureza do seu comportamento. É uma escolha baseada no comportamento das personagens, ter uma perspectiva sobre o lado mais ultrajante delas.
O que hoje se destaca é o lado premonitório de High Hopes. Alguém diz: “No ano 2000, haverá 30 canais de televisão 24 horas por dia a dizer o que devemos pensar”. E sobretudo a sequência perante o túmulo de Karl Marx: o sentimento de falhanço, de impotência, derrota, talvez...
É muito doloroso olhar para essa sequência hoje — hoje, mesmo, quando falamos, dia das eleições intercalares americanas. É deprimente considerar que algum optimismo que tivesse restado naquele filme talvez não tenha sido cumprido. É um assunto difícil de confrontar, sobretudo quando se tem netos, como é o meu caso. Na altura, esperava-se que fôssemos optimistas, mas com dúvidas e preocupações — é isso o que o filme expressa.
Sim, o filme termina com um horizonte, quanto mais não seja pelo resgate do património familiar — a intimidade a compensar as perdas, simbólicas e não só...
Penso que é mesmo isso.
Já que falámos de Meantime: por esta altura da sua carreira, já conhecíamos Timothy Spall, Jim Broadbent, Allison Steadman, David Thewliss, que se destacariam ainda mais na sua obra. Em Meantime, conhecemos os jovens Gary Oldman e Tim Roth. Que nunca mais tiveram protagonismo nos seu seus filmes. Porquê?
Nestas coisas não há propriamente uma razão. Haverá outras pessoas que vê nos meus filmes e que depois deixa de ver. Mas esses tipos, como sabe, e é por isso que me faz a pergunta, tornaram-se actores de Hollywood, estrelas, puseram-se numa trajectória diferente, na verdade num planeta diferente. Eu continuei a trabalhar com actores que não enveredaram por aí.
Ser uma estrela é um impedimento para o trabalho que desenvolve?
Sim, não por um preconceito contra as estrelas. É por um motivo prático. Quem toma parte nestas coisas envolve-se num período bastante dilatado de trabalho, e é mesmo importante que esteja disposto a viver onde tudo se passa. Deve saber que em algumas alturas é chamado para trabalhar e que noutras tem de esperar enquanto as coisas se desenvolvem com os outros actores. E tem de fazer parte de uma equipa. Não é nada apropriado para quem se tornou no centro das atenções e que faz o tipo de exigências que as estrelas fazem, incluindo saber o filme que se está a fazer.
Uma das coisas que acontecem no meu trabalho — com a excepção dos filmes de época — é que nunca sabemos, quando começamos, que filme vamos fazer. Quando se está na lógica da estrela de Hollywood, tem que se ler um argumento, tem que se aprovar a reescrita do argumento, julgar isto e aquilo, perceber se é bom ou mau para a carreira — ninguém quererá estar num sítio à espera enquanto os outros desenvolvem as suas personagens. Ou seja, em termos práticos, para além de tudo o mais, não funcionaria.
Foi o seu director de fotografia habitual, Dick Pope, que disse que trabalhar num filme de Mike Leigh era “a lot of solidarity around a black hole”. Simplificando: tudo começa do nada com o trabalho com os actores, que criam uma personagem a partir de alguém que o próprio actor conhece...
... sim, em termos gerais, porque podemos “copiar” as personagens de várias fontes, mas, sim, tudo começa com eles a improvisarem a partir de pessoas que conhecem.
Num filme como Naked/Nu [1993], que foi central na sua obra e decisivo para a projecção dela, o que está em causa com a personagem de Johnny [David Thewliss] parece algo de diferente...
[risos] Sim.
Parece mais a incorporação do espírito de um tempo. Até porque quando Johnny fala... quando provoca, quando instiga, está tanto a falar para as outras personagens quanto para o espectador...
Não discordaria de nada do que disse.
Em 1993, Thatcher tinha já desaparecido, Johnny é sobrevivente de um apocalipse?
Sim, embora também se possa dizer que se Thatcher contribuiu para a existência da personagem e do filme, queria que Naked atingisse o universal e não apenas o universo da política britânica.
É tão brutal o que acontece em Naked, filme que aparece após High Hopes e de Life is Sweet [1990], que queria perceber o que é que tinha acontecido, ou o que é que lhe tinha acontecido, para filmar este fantasma a incendiar o ecrã à sua passagem...
Quando Naked estreou, alguns disseram que a personagem era um cínico. Discordo totalmente. É um idealista. Mas é um idealista frustrado, decepcionado. Olha para o mundo, vê como está fodido, lamenta isso, e os seus sentimentos de frustração manifestam-se na forma como ele se comporta. Mas está ardente de conhecimento e de ideias e acima de tudo desapontado com o cinismo do mundo material, da sociedade. O filme é um olhar sobre o mundo material, e um lamento pelo que aconteceu, onde lançamos uma série de ideias, reflexões e sentimentos.
Conhece o trabalho de um realizador português chamado João César Monteiro?
Não.
Johnny, que alguns vêem como parente do Boudu de Jean Renoir [Boudu Sauvé des Eaux, 1932], parece também da família da personagem que Monteiro desenvolvia por esses anos, João de Deus, figura errante, maligna e frágil, saída dos esgotos da civilização, e que também dava muito trabalho aos que com ele se cruzavam... Prosseguindo: Segredos e Mentiras [1996] não podia ser mais diferente: em todas as personagens lateja um desejo de afecto. Durante a improvisação com os actores há um tema, tal como um motivo musical a aparecer numa melodia...?
Como autor, como cineasta ou como dramaturgo, como quiser, o meu trabalho é explorar as coisas até aos pormenores, e esse trabalho é conduzido por um conceito, aquilo de que se trata. Há um espírito da coisa. E é claro que isto não acontece ao acaso. Mas não discuto isso com os actores, não lhes apresento uma agenda. Aliás, os meus actores só sabem o ponto de vista das suas personagens, nunca têm uma visão global. Nunca os envolvo na filosofia do filme.
Uma das personagens diz “hold me tight, Maurice” e isso alberga o filme todo e as personagens, e o que acontece com elas. Portanto, o que se passa é que, na pesquisa e improvisação, o realizador conduz os trabalhos para a manifestação de um tema...
Sim, é exactamente isso o que faço. É isso o que nós, artistas, fazemos, não interessando saber qual o meio. É isso o que um escultor faz.
Agora confesso-lhe: um dos meus favoritos é Topsy Turvy [1999]. Algo de especial acontece nos seus filmes de época, mesmo contando com o facto de a sua obra ser, toda ela, idiossincrática. Pergunto-lhe: o seu método, em que os actores criam as personagens a partir de alguém que conhecem, é utilizável nos filmes sobre personagens que existiram, como em Topsy Turvy [sobre a parceria entre o libretista W. S. Gilbert e o compositor Arthur Sullivan, autores de 14 óperas cómicas entre 1871 e 1896, entre as quais The Pirates of Penzance e The Mikado]?
É possível utilizar o mesmo método, repare: pode ler os livros que quiser sobre Gilbert e Sullivan ou Turner [de Mr. Turner, filme de 2014 sobre a vida do pintor britânico J.M.W. Turner — Monumental 2, 4.ª 21, às 21h30] ou personagens de Peterloo. Mas isso não faz as personagens acontecer. O que quer que se leia, fica na página. Para dar carne e sangue a uma personagem, torná-la tridimensional, o actor tem de começar por algum lado. E não faz sentido começar pelo que está na página. Por exemplo, Jim Broadbent a criar W.F. Gilbert: lemos tudo o que pudemos, o que não sabíamos e o que valia a pena saber. Tínhamos informação a sair-nos pelas orelhas. Depois, sentámo-nos e dissemos: “OK, vamos fazer uma lista de todas as pessoas que conhecemos que podem ser fonte da caracterização desta personagem tal como a apreendemos.” E utilizámos essa pessoa para activar uma personagem histórica.
Eis por que gosto tanto deste filme: a forma como o guarda-roupa — está-se sempre a falar de espartilhos, de leques — e os cenários “falam” de uma claustrofobia; as personagens que, escrevendo letras e músicas de espectáculos fantasiosos, são impenetráveis e irrecuperáveis na solidão e tristeza. O que é que lhe interessou em Gilbert e Sullivan?
Primeiro que tudo, pensei que seria interessante fazer um filme de época. Depois, que seria fascinante virar a câmara para nós próprios, para aquilo que fazemos, nós, os do entertainment. Em terceiro lugar, sempre achei o teatro vitoriano particularmente evocativo. Em quarto lugar, acontece que gosto das óperas de Gilbert e Sullivan. E há um quinto: estava bastante seduzido pela pura impertinência de fazer este filme quando toda a gente estaria à espera que eu fizesse outro Naked ou outro Segredos e Mentiras.
Na sequência final, Gilbert e a mulher, há uma polida crueldade que poucos cineastas conseguem tornar palpável. Lembrei-me de Bergman...
Claro, é uma enorme inspiração.
Peterloo é mesmo diferente. Para já, há apenas uma personagem: o grupo. Há um acontecimento, mas o filme é sobretudo o movimento lento mas inexorável de uma sociedade que não consegue evitar caminhar para esse final: um massacre...
Muito bem, isso.
É um historiador?
De facto, podia ter perguntado isso no início desta conversa e ver toda a minha obra como a história do final do século XX e do início do século XXI, mas não sei... seria muito pomposo ser eu a responder-lhe... É verdade que os meus filmes, juntos, expressam uma visão do mundo. No caso de Peterloo, fui um historiador? Depende do que se entende por historiador. Todos destilámos uma sequência histórica de acontecimentos. E é muito pós-documentário, uma dramatização, uma destilação e, de novo, funciona, se é que funciona, pelas pessoas se comportarem como se comportam. O filme é uma reflexão, uma meditação, que só tem valor se a conseguirmos relacionar com o mundo em que vivemos no século XXI.
Uma das coisas singulares é a forma como Peterloo vai anulando a ênfase melodramática...
Nunca tinha pensado assim. Há conflito, há emoções. Deixe-me só voltar ao início da nossa conversa: a coisa mais específica, para mim, de Bleak Moments, para além do que falámos, é a sequência de um filme sem catarse. A bolha nunca rebenta. Claro que os filmes mais tardios eram catárticos, havia crise. Peterloo não é catártico. Pode-se argumentar: que maior catarse poderia haver do que o massacre de Peterloo? Mas não é isso a que se está a referir, pois não? O filme é um conjunto de pessoas com os seus comportamentos diferentes numa viagem em direcção a um acontecimento que é cataclísmico mas que, como você disse, não é catártico no sentido dramático.
Que filme quereria neste momento revisitar?
A Árvore dos Tamancos [1978]. Olmi!
Toda a programação em: www.leffest.com