Áreas de Protecção Total da Peneda-Gerês: antes que tudo se perca
Com o coberto vegetal profundamente destruído, maioritariamente reduzido a matos a perder de vista, onde o arvoredo subsiste de uma forma errática, isolada e por isso cada vez mais vulnerável, qualquer ideia de ordenamento do território é pura fantasia.
Finalmente ganhei coragem para me acercar dos núcleos de vegetação natural mais importantes da Serra da Peneda com o objectivo de avaliar o impacto dos devastadores incêndios que em 2016 a varreram toda.
O “Azevinho” era uma árvore imponente! Usei-o como elemento referencial nas minhas notas de muitas abordagens que tenho feito por aí. Ele vivia só, já sem a companhia dos seus. Melhor dizendo, vivia muito mal acompanhado, o que explica o seu fim. Outros incêndios, fogos antigos e recentes, em muitas décadas, foram dizimando os azevinhos e os carvalhos com quem partilhava uma vista soberba sobre o vale que à sua frente rapidamente se afunda. Por isso sobrevivia rodeado de matos, de um giestal que ciclicamente se agigantava e que desta vez não o poupou, apesar da linha de água que lhe corria pelo pé. As fotos que lhe tirei neste setembro, para memória futura, evidenciam a violência das chamas que lhe esventraram o portentoso tronco e o queimaram por completo e que contrastam com todas as outras que tenho dele, anteriores ao verão de há dois anos.
A sua morte foi lenta e silenciosa, longe dos holofotes mediáticos dos incêndios que, pelas piores razões, têm sido notícia constante. Tão lenta e silenciosa com tem sido a destruição dos melhores redutos de vegetação natural do nosso único parque nacional. Se exceptuarmos o coração da Mata de Albergaria, objecto de maior atenção e controlo e, muito importante, com quase todo o seu perímetro abrangido pela Mata Nacional, as duas restantes Áreas de Protecção Total do Parque Nacional têm sido destruídas pelos fogos e queimadas dos pastores e pela pressão do gado bovino e equino. O plano de ordenamento desta área protegida não as conseguiu libertar deste pesadelo. A não desafetação das Matas do Cabril e do Ramiscal do regime de baldios é a principal razão porque tão importantes redutos naturais continuam a perder-se. A falta de meios humanos para uma vigilância eficaz igualmente contribui para esta perda intolerável.
O pastoreio que hoje se pratica nas serras do norte é extensivo e livre, não acompanhado por pastores. Muitas das cabeças de gado soltas na serra não são propriedade de residentes no território a tempo inteiro. São de criadores de gado que se dedicam a este tipo de exploração pecuária para beneficiar dos subsídios comunitários. Com o coberto vegetal profundamente destruído, maioritariamente reduzido a matos a perder de vista, onde o arvoredo subsiste de uma forma errática, isolada e por isso cada vez mais vulnerável, qualquer ideia de ordenamento do território é pura fantasia.
A maior parte dos fundos comunitários que são atribuídos sob a abrangente capa do “ambiente” destinam-se a acções de requalificação de infraestruturas, que se em muitos casos são importantes, na sua maioria convergem na melhoria das condições de usufruição humana, na potenciação da exploração turística. Muito pouco se destina a recuperar a natureza, a reabilitar o coberto vegetal em geral, a floresta em particular.
Há muito que defendo que o Estado português devia “exigir” às instâncias europeias verbas para aplicar diretamente na recuperação das nossas matas. Uma fortíssima campanha de substituição das manchas de monoculturas por verdadeira floresta, baseada em espécies autóctones. Uma acção em larga escala a iniciar nos terrenos do Estado que nos aproxime dos nossos parceiros comunitários, afastando-nos da situação de verdadeira lixeira vegetal do espaço comunitário em que nos transformamos. A total disponibilidade para ajudar Portugal, reiterada pelo comissário Frans Timmermans na sua recente presença na escola de verão da comissão europeia, em Marvão, é um desafio que o Estado português devia acolher de imediato.
Voltemos ao Parque Nacional e às suas Áreas de Protecção Total. Atendendo às dificuldades de ordenar o território devido ao tipo de pastoreio que actualmente se pratica, veda-las é a única solução possível. Na sequência dos devastadores fogos de 2016, o Estado, finalmente, avançou com algo que há muitos anos venho propondo. No Ramiscal, foram constituídas pequenas áreas cercadas e, volvidos alguns meses, é notória a recuperação da vegetação herbácea, não pressionada pelas vacas e cavalos. Dentro dos cercados a regeneração natural do arvoredo também fica protegida e será facilitada com sementeiras de essências autóctones. A medida é positiva, mas não basta. São espaços diminutos que não protegem toda uma área de eleição. Há que ser mais ambicioso e confirmar, no terreno, o estatuto de protecção que o plano de ordenamento lhes conferiu.
É neste sentido que aqui deixo um desafio ao Governo. Avançar com a vedação total do perímetro das Matas do Cabril e do Ramiscal, com o estatuto de reserva integral. Um cercado que deve impedir a passagem do gado mas não a circulação das espécies de animais selvagens de maior porte, nomeadamente do lobo, da cabra-montês, do corço, do javali e, pontualmente, do veado, o que com algum engenho se consegue garantir. Trata-se de um projecto cujo custo poderá ascender às duas ou três centenas de milhares de euros, com toda a certeza um investimento irrisório face à grandeza do que está em causa, porventura o mais valioso contributo para a recuperação e preservação futura do melhor património natural que o nosso único Parque Nacional ainda encerra.
É uma questão muito especifica, mas da maior importância, entre a imensidade de problemas com que a floresta portuguesa se confronta e que deverão ser pragmaticamente enfrentados e resolvidos, se da genérica e difusa ideia de melhoria da “gestão florestal” em que normalmente se queda a divagante discussão pública em torno da “floresta” e dos incêndios, se passar para o terreno e se fizer o que se impõe para que Portugal volte a ter floresta.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico