Uma Palmilha na engrenagem a mostrar a vida como ela é
Palmilha Dentada abriu portas a todos os artistas que quisessem integrar uma das suas criações. Precariedade, recibos verdes, ausência de políticas culturais. Uma peça-manifesto sobre a crise no teatro que é, na verdade, a crise de um país. Antes de Borla que Mal Pago está em cena até sábado, 17 de Novembro.
Madu leva uma música ensaiada, procura mostrar o timbre afinado. O casting, entra e sai de talento mais ou menos evidente, é um palco de ansiedades e medos, de oportunidade e sonhos. Vítor, o encenador, interrompe a melodia: “Já pagas IVA?”. E perante o desentendimento da actriz, troca por miúdos: “Se já atingiste os dez mil euros?”. “Eu já tenho actividade há cinco anos, mas acho que ainda não”, responde hesitante. “Eu dizia dez mil por ano, não é acumulado”, aponta o encenador. “Dez mil num ano? É possível? Uau!”. A plateia manifesta-se em gargalhada. A seriedade do assunto fica latente. Parece invenção de teatro, a ficção a dar asas ao exagero. Mas em Antes de Borla Que Mal Pago, produção da Palmilha Dentada, qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. Mesmo quando, por vezes, pareça demasiado absurdo para ser verdade. “É tudo real”, sublinha o encenador Ricardo Alves. E tudo pode ser visto até este sábado, 17 de Novembro, no Armazém 22, em Vila Nova de Gaia.
As políticas culturais do Estado central e das autarquias foram plantando a tristeza nos dias de Ricardo Alves. O encenador, nestas andanças há mais de duas décadas e “pai” da quase maior de idade Palmilha Dentada, estava cansado de ver “tanto talento desperdiçado” e testemunhar a aposta em políticas de cartão. Condenadas a ruir, sem futuro possível. E desse desencanto fez nascer um apelo no Facebook: a “estudantes de artes cénicas, actores profissionais desempregados, criativos que não querem ou não conseguem criar uma estrutura ou companhia, gente a fazer-se à vida, gente que acredita que mais vale fazer de borla do que mal pago e pessoas que não conseguem ou não querem andar a trabalhar três meses numa criação para apresentar uma vez num qualquer teatro municipal”. Em regime de “trabalho intensivo”, a Palmilha convocava artistas para vestirem um manifesto, numa peça politicamente incorrecta. Remédio para gargalhadas instantâneas e depressão pós-visualização.
Ricardo Alves recorda o “melhor elogio” alguma vez recebido para ilustrar o que gostava de produzir com esta “comédia à Palmilha”. Um dia, depois de ver Cidades que Partem, um amigo contou-lhe os efeitos do espectáculo: tinha adorado, dado umas boas risadas e chegado a casa deprimido. “O objectivo da arte é esse”, instrui, “entreter, comunicar, aquecer e levar um lastro para casa que pode não ser tão simpático”.
A peça, em cena desde 25 de Outubro e até sábado (21h46, cinco euros ou 7,5 para amigos), é uma reflexão sobre o actual momento das artes performativas em Portugal e no Porto em particular. Mas boa parte do país corre o risco de se ver ao espelho nas dores da cultura. “Falamos da realidade do teatro, mas é a mesma de outras profissões”, diz Ricardo Alves: “Há uma quantidade de esquemas para atrasar a entrada dos jovens na vida profissional que são atrozes. Estamos fartos de desperdiçar talento. Devemos ter os caixas de supermercado mais qualificados do mundo. Mas não conseguem singrar neste país porque está tudo a construir CCB e ninguém quer construir teatro de bairro.”
A metodologia foi em boa parte o improviso e ergueu um espectáculo num tempo recorde de cerca de três semanas. Nos dois primeiros dias, conversou-se. Ouviram-se as histórias mais surrealistas, as feitas cómicas de tão trágicas que são, as mais comuns. Fizeram-se improvisos à volta da ideia de um casting, baptizou-se a banda que acompanharia a peça de Penhorados, homenagem aos muitos artistas com dívidas à Segurança Social, criou-se uma “solução” de palcos em rotundas por todo o país. O texto, com base nesse “laboratório”, foi depois trabalhado por Ricardo Alves. É trágico e cómico. Às vezes cáustico. A vida como ela é.
“É também de referir a deriva ziguezagueante do poder central no que às políticas de apoio às artes diz respeito. Sem uma visão política estruturada e sem um modelo de apoio que pudesse ser instrumento dessa política, tem-se optado por tornar a ferramenta na própria essência política, assumindo como principal objectivo a longo prazo a navegação em mar tranquilo, tentando ao máximo dar resposta às antiguidades estabelecidas de forma a evitar o mar revolto”, anuncia uma das actrizes numa suposta conferência de imprensa. E, ao lado, alguém traduz: “Diz-nos a Mariana que ninguém pensa na merda que é preciso fazer, e que só querem que não aconteça merda da grande."
Há dívidas à segurança social, castings onde se revelam egos maiores do que palcos, gente a quem o cachet é dado sob a forma de convites para venderem, artistas incrédulos com a possibilidade de atingir 10 mil euros de rendimento num ano, actores que têm de ser cozinheiros, motoristas, promotores, assessores. “Mesmo a situação absurda do político dizer ‘peguem lá as chaves e não me chateiem mais’ é o mais real que acontece na política para a cultura em Portugal”, lamenta o encenador da Palmilha Dentada, companhia com “casa emprestada” no Armazém 22 e sem apoios estatais ou camarários.
Ricardo Alves, entusiasta da comédia e crente da possibilidade de nos rirmos de tudo, não gosta de ver a política para a cultura parecer uma brincadeira de gente grande. Governos e autarquias. O Estado, critica, “tem vindo a demitir-se e a querer que cada grupo seja quase um ministeriozinho da Cultura, com sector educativo, teatro para a infância, reciclagem de actores, preocupação com o público e ainda espectáculos sobre integração das mulheres, deficiência, contra o racismo.”
No Porto, os espaços para as companhias actuarem são cada vez menos. E as estruturas vão caindo, perante a missão impossível de sobreviver sem apoios. O Pé de Vento perdeu recentemente o Teatro da Vilarinha após o fim de uma parceria de mais de vinte anos. As Boas Raparigas fecharam. Muitos grupos perderam a casa depois do fecho da Fábrica, num processo envolto em polémica. Por causa de uma política de apresentação das peças em apenas dois ou três dias, construídas em dois ou três meses de trabalho, Ricardo Alves escreveu há tempos “o elogio da cadeira vazia”, tentativa de combater a “ânsia de encher plateias da forma mais selvagem possível” porque “é preciso haver cadeiras vazias para alguém se decidir a ocupá-las”.
Uma mudança estrutural é urgente. Mas se não vier a revolução, venha ao menos uma evolução: “1% para a cultura, não sei se serve de muito mas é um salto”, começa Ricardo Alves, a sublinhar a necessidade de uma mudança no olhar: “Temos de parar de encarar a cultura como um gasto, vê-la como se vê a saúde e a educação. A cultura é a única coisa que nos pode salvar da barbárie e da não-civilização, da falta de empatia e solidariedade”. E uma outra estratégia: prescindir das “coisas faraónicas e grandes” e apostar em “trabalho de lapa”, fazendo os políticos implementar “medidas que darão frutos a 30 anos”.
Da plateia informal do A22, com bar aberto durante o intervalo, vêem-se as tristezas, desilusões, angústias e medos. Por três semanas de ensaio e 12 noites de palco, faz-se da tragédia comédia. Dá-se lugar ao riso e ao sonho. No final, conta-se a receita de bilheteira e divide-se entre os 16 em palco e mais uns na retaguarda. É pouco, mas decente. E não é conivência com o mercado, é um manifesto: porque antes de borla do que mal pago.