A Velha Mentira e o Grande Esquecimento

Se queremos fugir neste século XXI à maldição das guerras de todos-contra-todos que nos marca em todos os inícios de século, a luta contra o Grande Esquecimento começa agora e é de todos os dias.

Há cem anos e um dia os sinos das igrejas de Shrewsbury, em Inglaterra, tocavam com a notícia do fim da I Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, na mesma aldeia, bateram à porta da casa da Sra. Susan Owen para lhe entregar um telegrama. O seu filho Wilfred tinha morrido há exatamente uma semana, hora por hora, na frente de batalha em França.

Wilfred Owen foi uma das últimas estúpidas mortes de muitos milhões de estúpidas mortes de uma guerra estúpida que começou há cento e quatro anos e acabou há cem anos, feitos ontem, sem que ninguém saiba muito bem explicar exatamente porquê. A mãe de Wilfred nem teve tempo de respirar aliviada ao saber que a guerra tinha acabado antes de receber a notícia de que o seu filho, afinal, estava morto. Houve assim muitos como ele — entre os milhões de “meninos de suas mães”, como foram chamados no poema de Fernando Pessoa —, rapazes cujas mortes foram comunicadas ou descobertas depois, e às vezes bem depois, de a guerra ter acabado, sublinhando ainda mais o absurdo de ela ter começado.

Esse absurdo, Wilfred Owen tinha-o entendido bem e explicado melhor do que muitos. Foram dele alguns dos melhores poemas escritos nas trincheiras da I Guerra. Num deles, publicado apenas depois da sua morte, Wilfred descreve uma cambaleante ofensiva logo desbaratada por um ataque de gás, e a agonia de um companheiro que não pôs a máscara de respiração a tempo,

“com os seus olhos esbranquiçados contorcendo-se no seu rosto, 

o rosto pendente, como o de um diabo doente pecaminoso,

e as ânsias audíveis, a cada golpe, de sangue,

gorgolejando daqueles pulmões corroídos de espuma

obscena como o cancro

amarga como fel

...

meu amigo, se assim também o visses,

jamais repetirias com tanto brio a velha Mentira: que morrer pela pátria é doce e honroso”

A última frase foi escrita por Wilfred Owen em latim, retirada para o fim do poema (e para o seu título) de um dito romano antigo, Dulce et decorum est pro patria mori, de uma das odes de Horácio que ajudou a fundar aquilo a que Owen chamaria a “velha mentira”: que morrer pela pátria é doce e honroso. Morrer pela pátria pode ser necessário, pode ser até inevitável, pode resultar de um ato de bravura. Mas Owen viu à sua volta como se morria pela pátria na Europa das trincheiras, e não era doce nem honroso.

Entre os milhões que assim morreram estiveram muitos portugueses que saíram das nossas aldeias, vilas e cidades para combater pelas malhas que o império tecia em África ou sob as ordens (e desordens) de políticos civis e militares ambiciosos, na fronteira entre a França e a Bélgica. Portugal teria então dois milhões e meio de homens. Cerca de cinco por cento deles foram enviados para a Guerra. Dez por cento deles morreu, foi ferido, mutilado, desaparecido ou prisioneiro (por incrível que pareça, realizou-se este fim de semana uma convenção partidária em Portugal sem que nos discursos da sua líder ou da sua candidata às europeias tenha havido uma menção à I Guerra Mundial, apenas e só o evento mais importante da história europeia que se comemorava nos mesmos dias). Ora, Portugal nunca se poupou nem foi poupado às guerras na Europa. Portugal nunca foi uma ilha; e quando o país quis ser orgulhosamente só meteu-se numa prolongada, cruel e extemporânea guerra colonial em África, quando a Europa já estava em paz e a iniciar o seu processo de reconciliação e integração.

Uma das razões por que é difícil explicar a I Guerra Mundial é porque até muito recentemente não era a guerra, mas a paz, que era preciso explicar. A guerra era o estado natural da Europa. Neste ano não celebramos apenas o mais longo período de paz na história deste continente. Celebramos também já o início de século mais pacífico na Europa pelo menos desde a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Há cem anos, no início do século XX, já tínhamos tido a I Guerra Mundial (1914-1918): mais de vinte milhões de mortos. Há duzentos, as Guerras Napoleónicas (1803-1815): mais de quatro milhões de mortos. Há trezentos, a Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714): meio milhão de mortos. Há quatrocentos, a terrível Guerra dos Trinta Anos (1618-1648): oito milhões de mortos num continente menos densamente habitado, numa proporção que em certos sítios da Europa só foi ultrapassada pelos mais de sessenta milhões de mortos da II Guerra Mundial.

Hoje em dia a paz tornou-se normal e evidente; é a guerra a exceção que é preciso explicar. Ainda bem. Mas esse estado de coisas encerra também os seus perigos. A “velha mentira” corre o risco de ser substituída pelo “grande esquecimento”: a ideia de que a paz está garantida, que se pode olhar para o futuro do país ou do mundo sem tem de pensar na Europa, e que é possível pensar na Europa sem ter uma ideia para o projeto europeu, sobre como ele funciona e como poderia funcionar melhor. Se queremos comemorar mais de setenta anos de paz — se queremos fugir neste século XXI à maldição das guerras de todos-contra-todos que nos marca em todos os inícios de século — se queremos que mais nenhuma família receba a funesta notícia no fim de uma nova guerra que não se saiba bem como começou — a luta contra o Grande Esquecimento começa agora e é de todos os dias.

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