2019 é o ano de Leonardo da Vinci e em Florença já se vê a água como ele a via

O 500.º aniversário da morte deste mestre do Renascimento começa a ser assinalado com exposição rara do Códice Leicester nos Uffizi. “O verdadeiro Leonardo da Vinci está nos códices e não na sua pintura”, diz, provocador, o seu comissário.

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Claudio Giovannini/EPA
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A galeria dos Leonardos dos Uffizi já está renovada Cortesia: Galleria degli Uffizi

Cinquenta mil pessoas já viram a exposição que voltou a mostrar ao mundo uma das jóias de Leonardo da Vinci. Não se trata de uma pintura, nem sequer de um desenho. Os Uffizi, a galeria florentina que guarda uma das melhores pinacotecas do mundo e várias obras deste mestre indiscutível do Renascimento, tem desde o início do mês nas suas salas o Códice Leicester, mostrado pela primeira vez em 36 anos na cidade onde o pintor e cientista italiano redigiu estas importantes reflexões sobre a água.

Não sem uma boa dose de provocação, o especialista Paolo Galluzzi, comissário desta exposição que inaugura o que serão as férteis comemorações dos 500 anos da morte de Leonardo em 2019, põe tudo em perspectiva: “O verdadeiro Leonardo está nos códices que deixou e não na sua pintura.”

Até 20 de Janeiro de 2019, A Água Como Microscópio da Natureza: O Códice Leicester de Leonardo da Vinci está nos Uffizi para mostrar um manuscrito raramente visto em público. A sua presença é fruto de uma negociação de quase três anos com Bill Gates, que o comprou em 1994 por 27,1 milhões de euros, soma que, durante décadas, fez dele o livro e manuscrito mais caro de sempre. A obra chegou agora a Florença e ao museu que tem uma das mais importantes colecções de obras do Renascimento para mostrar um lado menos conhecido de um dos mais conhecidos artistas de sempre e para lembrar como vai ser difícil ter exposições monumentais e absolutas para este 500.º aniversário.

“O Códice Leicester é produto de Leonardo como artista maduro e extremamente sofisticado, sendo um observador preciso da natureza, um engenheiro capaz de abordar projectos audaciosos e um intérprete dos fenómenos mais significativos, tanto no microcosmos quanto no macrocosmos”, disse em comunicado Paolo Galluzzi, director do Museu Galileu de Florença e curador da exposição.

O manuscrito de 72 páginas — um caderno com observações científicas do artista redigido entre 1504 e 1508, em Florença e Milão — versa sobre a água e o seu movimento. Leonardo, que quando escreveu o Códice teria 55 anos, passava grande parte do seu tempo a observar o Arno, o rio que atravessa Florença, e a escrever e a desenhar diagramas. Tem o nome que tem porque durante mais de 250 anos os seus proprietários foram os condes de Leicester — Thomas Coke comprou-o em 1719 e receberia depois o título nobiliárquico.

Este códice, tal como outros escritos de Leonardo, está redigido da direita para a esquerda e de maneira a que só seja possível lê-lo usando um espelho. Fala das inundações descritas na Bíblia, dos fósseis como provas de vida pré-histórica ou em instruções para criar diques e barragens em rios. Contém também notas para si mesmo que antecipam a invenção de importantes instrumentos científicos: “Fazer lentes para ver a lua maior”, escreve, isto um século antes da criação do telescópio.

Uma "gadget" para uma exposição

A exposição enriquece-se com o Codescope, patrocinado pelos milionários tornados filantropos Bill e Melinda Gates, que permite uma experiência interactiva com o Códice Leicester e ver animações digitais dos seus desenhos ou ter acesso às suas traduções em italiano e inglês. Na investigação para a exposição, escreve o Wall Street Journal, foram recuperadas 70 placas fotográficas que datam do final do século XIX e do início do século XX e que revelam pedaços do texto já consumidos pelo tempo. Está ainda acompanhado por algumas páginas de outros códices do mestre, todas por empréstimo — Código Atlanticus, Código Arundel e Código sobre o Voo dos Pássaros.

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É uma exposição que “oferece ao visitante o prazer de se perder na mente de um génio”, segundo o New York Times, e que mostra, disse Paolo Galluzzi ao diário espanhol El País, o momento em que “se converteu num humanista”. Trata-se do “mais notável dos manuscritos científicos [de Leonardo]” e contém ideias “radicais, inquietantes”, escreve no catálogo da exposição Martin Kemp, autor de Living with Leonardo e um dos maiores especialistas mundiais na sua obra. “Há uma hierarquia de conhecimento que o torna muito famoso pela sua obra gráfica. Para mim, o verdadeiro Leonardo está nos códices que deixou e não na sua pintura. Faz todo o sentido que este ano se expliquem estes tesouros quase ilegíveis”, disse ainda Galluzzi.

Leonardo da Vinci morreu a 2 de Maio de 1519 e, sendo um dos nomes centrais da História da Arte e do pensamento, motor do Renascimento, não tem assim tantas obras plásticas unanimemente reconhecidas como suas. Tal faz com que a tentativa de programar exposições para assinalar a data incontornável dos 500 anos da sua morte tenha sido tanto uma corrida ao empréstimo, quanto um desafio de conservação para museus e outras instituições. “Seria impossível e errado” fazer uma exposição com base em empréstimos de obras, disse Eike Schmidt, director dos Uffizi, ao Art Newspaper na apresentação à imprensa de A Água Como Microscópio da Natureza. “Não podemos ser eticamente responsáveis por um acto que ponha em risco obras únicas que têm de ser salvaguardadas para gerações futuras”, diz sobre a sensível preservação das três pinturas que o museu tem no seu acervo, por exemplo, e que moram agora numa galeria renovada, com um sofisticado sistema de climatização.

Inquilinas dessa nova sala, Baptismo de Cristo, Anunciação e Adoração dos Magos podem ser vistas também, contextualizou Eike Schmidt ao New York Times, como exemplos do pensamento científico do mestre. “Leonardo não podia ter pintado como pintou sem a sua observação científica da natureza.” Estas pinturas estão agora bem perto de A Água Como Microscópio da Natureza para contemplação conjunta.

O que aí vem

Apesar de tudo, nos próximos meses haverá alguma circulação, ainda que controlada, de Leonardos para várias exposições que assinalam os 500 anos da morte do génio.

Leonardo da Vinci será organizada pelo Louvre, em Paris, entre 24 de Outubro de 2019 e 24 de Fevereiro de 2020, com as principais obras de Leonardo do museu francês — Mona Lisa, A Virgem dos Rochedos, A Virgem e o Menino e Santa Ana — e talvez, estima o Art Newspaper, Salvator Mundi, que se juntou ao rol de pinturas que se crê serem de Leonardo mas cuja autoria está ainda em discussão. Depois de extensamente restaurada, Salvator Mundi foi comprada em 2017 pelo príncipe Bin Salman, da Arábia Saudita, por 396 milhões de euros para depósito no Louvre de Abu Dhabi, mas ainda não foi exposta, o que tem dado força aos que põem em causa à atribuição ao mestre florentino.

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Salvator Mundi DR

Em Londres haverá Leonardo da Vinci: A Life in Drawing, com mais de 200 desenhos da Royal Collection a preencher a Queen’s Gallery do Palácio de Buckingham entre 24 de Maio e 13 de Outubro do próximo ano. Antes disso, a mesma exposição vai estar em itinerância por 12 cidades britânicas, entre 1 de Fevereiro e 6 de Maio de 2019.

Em Itália, no Castelo Sforza, em Milão, a sala decorada por Leonardo em 1498 em honra do seu mecenas, o duque Ludovico, vai ser reaberta a 2 de Maio depois de ter sido restaurada. Esta reabertura será acompanhada de duas exposições, uma de desenhos para a Sala delle Asse e outra sobre a Milão de Leonardo. Também nesta cidade estão já expostos Dez Desenhos d’A Última Ceia, no Museo del Cenacolo Vinciano.

No Museu Leonardino de Vinci, onde nasceu, estará uma mostra que o associa à geografia da cidade e que inclui o seu desenho mais antigo das montanhas de Montalbano, emprestado pelos Uffizi. Florença recebe ainda uma mostra no Museu Galileu sobre Leonardo e seus Livros.

Nos próximos dias devem ser anunciados mais detalhes sobre o amplo programa de comemorações em Itália.

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