Os abutres ao poder

O respeito liberal e democrático pela soberania popular requer sempre o integral respeito pelos direitos das maiorias e das minorias, do governo e das oposições. Mas nada disso está garantido com Bolsonaro, antes pelo contrário.

O ano é 2018, 57 milhões de votos, Mestre Moa do Katendê – corpo imolado, universidades violadas, aplausos nas ruas para os militares, Brasil a minha gente sua frio. “A nossa bandeira jamais será vermelha” – um mote do populismo que mais uma vez unificou multidões em cidades brasileiras para colocar abutres no poder. Jair Bolsonaro (PSL), ao lado de um chicago boy e de um círculo de generais estranhos à democracia, celebram nessas eleições três grandes feitos: a vitória sem disputa em arena pública; a vitória da impostura; a vitória do arbítrio.

Primeiro, a campanha bolsonarista violou a tradição que marca as mais intensas disputas no mundo democrático liberal, e que se traduz pela convivência entre indivíduos racionais e a troca de razões na esfera pública. Segundo, trespassou a igualdade de condições para argumentar, fugindo dos debates públicos, lançando-se no mundo da comunicação privada em grupos de WhatsApp para difundir fakenews, com indícios de financiamento empresarial –? esquema coibido pela justiça eleitoral brasileira. Terceiro, o grupo político de Bolsonaro retira das “sombras” ofertas políticas de elites antidemocráticas para penhorar o patrimônio público, os direitos sociais e as liberdades civilizadas.

Nessa altura, a confiança do brasileiro está hesitante entre o Bolsonaro com 28 anos de inércia na vida pública, somadas as injúrias proferidas contra minorias no parlamento brasileiro e o que ele tentou reconciliar, ao desdizer coisas em discursos durante a sua campanha nas redes sociais. Para ser mais explícito, muita gente quer saber, o autoritarismo vem ou não com o governo Bolsonaro?

Francamente, ficou claro que o novo Presidente do Brasil ainda não compreende os principais dilemas nacionais relacionados com a desindustrialização, o pré-sal, o desemprego, a segurança, a educação básica e a amazônia. Na medida em que desconhece os impasses sociais, ambientais e econômicos do Brasil, valeu-se de uma atitude para tergiversar a agenda pública, assim, iludiu o eleitor com falsos problemas: kit gay, casamento homossexual, ameaça comunista, doutrinação nas escolas, fim da família tradicional, entre outras estultices, todas elas com pouca importância para os problemas reais do país.

O populismo bolsonarista, ao invés de tratar os problemas reais e existentes, criou novos problemas, como a violência política inaugurada entre “petistas” e “bolsonaristas”. É uma agenda de proliferação de problemas, no passado levou a Alemanha à guerra, no Chile e Brasil oprimiram pessoas e desmantelaram a economia, atualmente, Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, eleito em 2016 com a principal promessa de matar traficantes. Segundo a ONG Human Rights Watch, mais de 12 mil pessoas morreram na guerra às drogas de Duterte.

Caro leitor, penso que já posso lhe responder aqui: o autoritarismo não tem hora para chegar! Não será com a posse de Bolsonaro, nem com militares nas ruas e nem mesmo com um governo que aplica autogolpe. Sabe-se, por meio dos trabalhos de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do livro How Democracies Die, que os autocratas não agem mais como no passado, através da ação de militares e generais com as armas em punho, exilando presidentes, suspendendo a constituição e ocupando o palácio presidencial, como no Brasil, em 1964, e no Chile, em 1973. Muitas pessoas ainda acham que é assim que ainda começam os governos autoritários. Já não é assim.

A democracia brasileira possui couraças institucionais suficientemente capazes de proteger os direitos dos cidadãos ou uma possível subversão das regras do jogo que colocam em risco a própria democracia?

Governantes com o perfil de Bolsonaro ameaçam a democracia de uma forma muito subtil, incremental e lenta, utilizando-se das próprias instituições democráticas para decompô-las por dentro, podendo usar, até mesmo, os meios constitucionais ou legais, quando encontram um congresso conivente e conseguem o controle dos tribunais. Assim fizeram Hugo Chávez (Venezuela), Vladimir Putin (Rússia), Viktor Orbán (Hungria), Recip Erdogan (Turquia), Rafael Correa (Equador), Alberto Fujimori (Peru), Daniel Ortega (Nicarágua), Rodrigo Duterte (Filipinas) e Jaroslaw Kaczynski (Polônia), todos com grande apoio popular no início de seus governos, o que os torna ainda mais perigosos. É uma espécie de caminho eleitoral para o autoritarismo, se escondendo atrás de uma fachada democrática, em que as coisas parecem ser bastante normais. O autoritarismo contemporâneo começa nas urnas e não mais nos quartéis.

Algumas características autoritárias são bem distinguidas nas ações e argumentos de Bolsonaro, fundamentais para compreender os riscos, entre elas, destaco as seguintes: certa rejeição e compromisso débil com as regras da competição democrática; negação da legitimidade dos partidos de esquerda; tolerância ou encorajamento da violência; e propensão a restringir protestos, ação de ativistas e de certas organizações cívicas ou políticas ligadas à reforma agrária ou de luta por moradia.

No Brasil, o autoritarismo sempre se apresentou como uma força nacional-desenvolvimentista, arrogando-se capaz de realizar as reformas que os governos democráticos seriam inaptos para lograr êxito. Foi assim com Vargas (primeiro ditador brasileiro), em 1937, e também com os militares e sua ditadura, em 1964.

Assim, não há qualquer razão na história, na política, na economia ou na ciência social para acreditar que o autoritarismo dará qualquer solução melhor para os problemas do Brasil. O desempenho de países com governos autoritários em geral é muito pífio, com algumas exceções como China e Singapura, mas há dezenas de governos autoritários falhados. Há muito pouco a ganhar, mas muito a perder com o autoritarismo. E, em qualquer caso, o respeito liberal e democrático pela soberania popular requer sempre o integral respeito pelos direitos das maiorias e das minorias, do governo e das oposições. Mas nada disso está garantido com Bolsonaro, antes pelo contrário.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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