Palmira, a mestre de uma refeição aos Bocados
Restaurante de Ponte de Lima reflecte um ambiente caseiro, de amigos que se juntam à volta da mesa.
Mais que vocação ou gosto, a cozinha faz parte da vida de Palmira Pereira praticamente desde a infância. E a culpa é daquela tendência dos minhotos para terem sempre a casa cheia. Amigos, famílias grandes que permanentemente juntam, e sempre com cozinhados e patuscada à mistura. Qualquer pretexto é bom para que o grupo se junte em volta da mesa.
Assim cresceu Palmira, a mais velhas das três irmãs, que, embora nascidas em Luanda, viveram já a infância em Ponte de Lima. A mãe, cabeleireira, tinha o salão em casa e à mais velha tocava tratar das refeições enquanto cuidava das clientes. Era já adolescente quando, em 1975, o resto da família teve que regressar em definitivo de Angola, agrupando todo o clã em Ponte de Lima. E só por parte da mãe eram 14 irmãos.
“Se já gostava de cozinha? Naquela altura tinha que gostar”, condescende Palmira, que se entusiasma bem mais na alquimia dos tachos ou na conversa sobre receitas, cozinhados e ingredientes, que a falar de si própria. Ainda se arrastou pelos bancos da faculdade, o curso de Direito, primeiro, e o de Administração Pública, depois, mas o gosto pela cozinha foi sempre dominante.
O restaurante Bocados, se é assim que se pode falar de um espaço familiar onde quem vem tem que avisar, reflecte precisamente esse ambiente caseiro, de amigos que se juntam à volta da mesa. É claro que o pretexto agora são os exímios cozinhados de dona Palmira. E, além de amigos e conhecidos, chegam por vezes também figuras públicas, executivos, que ali procuram o ambiente acolhedor, relaxado e discreto para os prazeres do paladar.
Outra das características deste restaurante fora da caixa é que não há menu ou ementa. A refeição faz-se em bocados — daí o nome da casa —, normalmente uma meia dúzia, onde a cozinheira dá largas à sua competência e criatividade. “Não gosto de estar cingida a ementas ou a um programa. Nem de encomendas, sinto-me limitada. O que me motiva mesmo é arriscar, fazer coisas novas. Leio, viajamos, vamos a muitos lados, provamos pratos novos e digo cá para mim que os hei-de fazer à minha maneira. Normalmente sai bem e as pessoas gostam.”
Palmira fala sempre no plural e é evidente a enorme cumplicidade com José António, o marido, provavelmente o responsável maior por esta aventura culinária. Na verdade, trata-se antes de complementaridade, já que ambos se completam na procura e experimentação de novos produtos, ingredientes e combinações. Um casal epicurista, que desde que José António decidiu pôr termo à carreira docente, no 2.º ciclo, se dedica por inteiro à cultura gastronómica. Tudo com a finalidade de proporcionar prazer e satisfação aos amigos. E também, claro, aos clientes, que logo ficam amigos.
Tal como o executivo radicado em Angola, que, tendo visto uma reportagem televisiva, desatou a ligar para marcar uma refeição no próximo regresso a Portugal. “Mas como queria só para um não era fácil encaixá-lo, até que depois de ver tanto interesse até abrimos só para ele. Servimos-lhe algumas coisas ao estilo da cozinha angolana e agora sempre que cá vem traz um carregamento de produtos africanos. Farinha de fubá, mandioca, amendoim, inhames, temos de tudo aí trazido por ele”, relata José António.
E se bem que o essencial da cozinha gire em volta da cozinha tradicional minhota, a diversidade culinária é outra das vertentes na arte de experimentação de Palmira. As influências das viagens por Espanha, sobretudo Galiza e País Basco, pousam frequente sobre a mesa, mas também as memórias de Angola — “cozinhávamos muito lá em casa com as minhas tias e os meus avós”, diz Palmira — e até oriental. “Há tempos fez um garam masala que foi um sucesso. Juntou grão e legumes estufados aqui da região e os clientes desse dia adoraram. Até lhe chamamos logo cozinha ‘Indialimia’”, relata o marido, deixando perceber a cumplicidade que se estabelece com os que se sentam à mesa do Bocados.
Outra das grandes preocupações do casal passa pela origem dos produtos, mesmo que tal se torne por vezes legalmente sinuoso. Legumes, patos, galinhas, coelhos ou cordeiros de criação familiar, nos quais conta muitas vezes mais o gosto e orgulho da produção que o intuito negocial.
“Em muitos casos são os vizinhos, e sabemos como fazem e tratam as coisas. Temos sempre a preocupação de que não usem produtos químicos”, destaca José António, que cita o caso do cobiçado leite-creme de tangerina — da lavra de Palmira — feito com a fruta do próprio quintal.
E nem se pense que há segredos ou ingredientes secretos. Com toda a humildade, a cozinheira explica como executa o cordeiro em vinho tinto (da casta Vinhão), o arroz com o pato inteiro, os milhos com ossinhos de entrecosto que até os transmontanos conquistam, as açordas que gosta de fazer pelo Inverno, ou a recente cevadinha com pernil fumado.
O difícil mesmo é puxar Palmira para mesa para um pouco de conversa, que os fogões prendem-na e são mesmo a sua paixão.