Sete variações sobre a existência humana

Uma História Antiga é o regresso de Jonathan Littell à grande narrativa de ficção, 12 anos após As Benevolentes.

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O livro de Jonathan Littell ganha força quando lido obsessivamente como parece ter sido escrito ULLSTEIN BILD/GETTY IMAGES

Depois do sucesso de As Benevolentes (prémio Goncourt em 2006), que conta a II Guerra Mundial na perspectiva de um oficial alemão das SS, o francês Jonathan Littell (Nova Iorque, 1967) regressa ao romance com Uma História Antiga (D. Quixote), versão nova e alongada — como refere o subtítulo — de um texto publicado em 2012. Nesses doze anos, Littell publicou ensaios, assinou um documentário sobre crianças-soldado no Uganda, fez reportagens na Tchétchénia e toda essa experiência parece ter culminado num livro ambicioso, um texto que causa estranheza, compulsivo, incómodo por nele se perceber as múltiplas hipóteses de se ser humanamente e de se estar diante de um retrato inclemente do nosso tempo. 

É texto vertiginoso, história obsessiva e labiríntica a fazer lembrar Alphaville, de Jean-Luc Godard, como referiu o crítico do Líberation. Mas não é só. São múltiplas as referências literárias, artísticas, éticas em Uma História Antiga.  

No início de cada um dos sete capítulos em que se divide este livro de quase 400 páginas, o/a protagonista e narrador/a sai de uma piscina, veste “uma roupa cinzenta e sedosa” e entra num corredor. Corre. “As paredes, de cor baça, desfilavam ao meu lado, parecia-me por vezes detectar uma abertura ou pelo menos uma zona mais sombria, não era capaz de ter a certeza, por vezes também o tecido da camisa aflorava uma delas e eu deslocava-me para o meio do corredor, este devia estar a curvar, mas ligeiramente, [...] só o bastante para perturbar o equilíbrio da corrida, tinha começado a suar, embora não fizesse nem calor nem frio, respirava com regularidade, inspirando a cada três passos um hausto de ar insípido antes de o expiar num sibilo [...]. À minha frente não distinguia nada, avançava quase ao acaso, por sobre a minha cabeça não avistava nenhum teto, talvez estivesse enfim a correr ao ar livre, talvez ainda não. Uma pancada violenta no cotovelo trespassou-me o braço com um estilhaço de dor, levei até lá a outra mão e voltei-me de imediato: um objecto brilhante, na parede, destacava-se na sombra. Toquei-lhe com os dedos, era uma maçaneta, fi-la rodar e a porta abriu-se, arrastando-me atrás dela.”

Cada porta será a entrada para uma existência distinta que Littell explora, por sua vez, em várias versões, com uma precisão e alternância quase matemáticas. A vertigem narrativa que desafia essa mesma precisão está na carga emocional e obsessiva que confere a cada um dos episódios. Neles, a pessoa que narra tem sempre o mesmo ponto de partida — a piscina, o corredor e a porta —, mas há pouco em comum quanto aos territórios onde tudo se passa. Passamos de um normal pai de família numa banal casa burguesa a um homem com uma relação esporádica num quarto de hotel, a um transexual num ambiente de orgia, um solitário num estúdio cheiro de livros e de discos a olhar a cidade, alguém num ambiente de guerra em que as crianças são as principais vítimas. No total, são cinco territórios. Em todos, há uma criança loira que vê o que não é suposto ver. 

Sexo, violência, submissão, solidão, o corpo enquanto objecto de desejo e alvo do horror, o fantasma da morte e da decadência, a sujeição ao outro e a possibilidade permanente de se ser o outro. Não é por acaso que Littell usa espelhos em quase todos os cenários. O espelho não é apenas o reflexo do eu, mas também um filtro para se olhar a si mesmo e ver os outros nele. O espelho que revela cicatrizes e a nudez, um casal na cama onde há um edredão com folhagem verde em fundo dourado — um dos elementos que o escritor usa para identificar uma situação; o espelho que revela a prostração depois da orgia, ou o que mostra a criança a olhar.

Não será apenas a alusão a Godard, como a crítica francesa tem referido. O cinema parece ter contaminado a estrutura e forma deste Uma História Antiga. Há notas de Stanley Kubrick e de David Lynch, um labirinto de perdição e de angústia, de volúpia e sensualidade, de pornografia e do horror absoluto aqui materializado na guerra. A personagem/protagonista olha-se enquanto vive. Age e analisa-se. Alguém que consegue ver-se fora do seu corpo, um observador frio, silencioso, capaz de gestos e emoções abruptas. Mas também o desvairado diante da perda, o que chora de medo e de mágoa.

E é sempre, ao mesmo tempo, sujeito activo e sujeito passivo numa sobreposição de camadas que vai ganhando complexidade à medida que o livro avança. “Desta vez não sonhei. Quando abri os olhos, o musgo mesmo à minha frente, reflectia uma luminosidade esbranquiçada: a lua tinha-se deslocado e a sua luz infiltrava-se agora de lado, por entre as árvores, iluminando o outeiro. Apercebi-me, angustiadamente, de que o gatinho tinha desaparecido; fui ver depressa atrás dos jazigos, mas não estava lá nada. A emoção tomou conta de mim, sentia as lágrimas nos olhos, não aguentava a ideia de perder também aquele gato e pus-me, como louco, a explorar o espaço ali em volta, a lançar pequenos assobios discretos.”

Littell nunca abranda. Talvez só quando o/a protagonista nada na piscina atento aos ruídos à volta. Ruídos de água. Sempre que ele anda pelo corredor, que passa a porta, não resta ao leitor a não ser seguir a voragem, entrar numa quase alucinação geradora de uma curiosidade que só abranda na última página. É um livro que ganha força quando lido obsessivamente como parece ter sido escrito. Só assim se consegue ultrapassar o maior defeito do romance: o do artifício literário que a matemática da estrutura não deixa esquecer. Coisa pouca, diante desta estranha ilusão conseguida por Littell.

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