A livraria com nome de gato vai perder o seu poiso vadio
Contrato de arrendamento foi cessado e Gato Vadio fecha portas a 1 de Abril de 2019. Livraria, espaço cultural e de intervenção social, a associação é abrigo de muitos, local onde se tece a cidade. E agora que a resistência se abala, dizem, também o exercício de cidadania enfraquece.
O assunto entrava de quando em vez no Gato Vadio. Sussurros da ameaça silenciosa transformada em narrativa comum na cidade contemporânea. Conversa repetida em associações, colectivos, espaços culturais, cafés, casas de moradores resistentes e de resistentes a ajudar à luta. Na livraria da Rua do Rosário falava-se de um Porto em metamorfose a arrastar moradores para a periferia, de um turismo com moldes de outras geografias, da lógica mercantil com olhos postos no lucro e fechados à diversidade. E da difícil oposição. Falava-se de tudo isso e Isabel Camarinha batia então na madeira: “Oxalá a nossa senhoria não se lembre de nós”, proclamava baixinho.
Espaço de resistência, o Gato Vadio forrou-se com cartazes da luta contra os despejos, punhos fechados erguidos, antes de ele mesmo se tornar epicentro de mais um abalo. O anúncio da manifestação de 22 de Setembro ainda mora no jardim da livraria. E é agora um problema dentro de portas. No início de Outubro, o temor de Isabel tornou-se real: numa carta em tom definitivo, comunicava-se à associação cultural e espaço de intervenção social Saco de Gatos que tinha de deixar “o arrendado livre de pessoas e bens”. A Gato Vadio, nascida em 2007, morrerá a 1 de Abril de 2019, verdade indesejada em dia das mentiras. “Por vontade de sua excelência a senhoria.” E isso, dizem, é nova machadada na cidade pensante e resistente.
Isabel Camarinha e César Figueiredo, voluntários e membros da direcção da Saco de Gatos, ainda digerem a notícia. Apanhados na curva que lhes dava apenas três meses para saírem, pediram à senhoria um prolongamento do contrato. Um ano, tendo em conta que a vizinha de cima tem também contrato até final de 2019 e não poderão intervencionar o edifício antes disso. Eram apenas mais alguns meses para respirar e conseguir, ao menos, devolver os livros ali deixados à consignação, recambiar mobiliário emprestado e encontrar poiso para o da associação. A resposta às preces chegou esta quarta-feira, em carta do advogado da proprietária: devem sair até 1 de Abril, caso contrário a renda sobe mais 500 euros por cada mês.
O anúncio do fim espalhou-se no início da semana. A Gato Vadio juntou ao infortúnio uma vantagem para os leitores: até ao fim do ano, há descontos especiais para quem passar pelo número 281 da Rua do Rosário, a funcionar num horário alargado (quartas das 14h30 às 20h30, quintas e sextas das 14h30 às 24h e sábados e domingos das 17h às 24h). Mas esse ganho soou a nada perante a notícia maior. E o desânimo e revolta chegaram à caixa de mensagens da Gato Vadio: súplicas de um último acto de resistência, ideias de arranjar nova casa ao Gato, relatos de histórias ali vividas.
“Ao Gato Vadio devo muitos amigos, livros, leituras, conversas, debates, filmes, músicas, exposições, cigarros, cafés e cervejas”, apontou o escritor Rui Manuel Amaral, ainda esperançado noutro desfecho. “Tristeza não tem fim. Acabo de saber que o Gato Vadio vai fechar. A primeira livraria que conheci no Porto, onde toquei, onde apresentei meus livros, onde fiz as primeiras amizades quando cheguei na cidade. É mais um pedaço gigante do Porto que desaparece”, escreveu o poeta brasileiro Luca Argel. “A gentrificação e a especulação imobiliária também afectam ferozmente a possibilidade do exercício da cidadania”, lamentou num post no Facebook a plataforma A Colectiva.
Júlio Carmo Gomes e Maya Marek, jornalista português e designer polaca, iniciaram o sonho em 2007. Abriram uma livraria, bar e atelier de design com o baptismo de Gato Vadio. E deram total sentido ao nome. Personalidade felina, indomável, dada a liberdades e curiosidade infinita, de unhas afiadas, mas disposto a ronronices, certificado de abrigo e conforto. “Pensaram que podiam viver disto”, diz Isabel Camarinha, certa de um sonho impossível desfeito anos depois. Isabel e César Figueiredo viviam ali perto, eram presença habitual no espaço e foram, pouco a pouco, atando amizade com Júlio Gomes. Por isso, ao saber das dificuldades da livraria e da ideia de a viabilizar tornando-a associação, lançaram-lhe rede e fizeram-se sócios fundadores. Agora, são eles e mais dois voluntários — Ana Ferreira e Jaime Oliveira — os alicerces da casa felina.
Pelas estantes de madeira da Gato Vadio, há muita poesia, política, edições de autor e de nicho, anárquicas e subversivas, livros de pequenas editoras e de grandes também, desde que avessas “a lógica de supermercados”: Antígona, Sistema Solar, Orfeu Negro, Etc, Pé-de-mosca. Há música erudita em CD e vinil (cortesia da loja Muzak), o “jornal de informação crítica” Mapa, uma respeitosa colecção de livros de arquitectura, revistas dificilmente vistas noutros locais. E há cinema (todas as quintas), debates (o último foi nas vésperas das eleições brasileiras), concertos, exposições, conversas entre compositores, uma aula de música erudita por mês. Margem para improviso e propostas.
Posto de venda do Grémio dos Armadores da Pesca de Arrasto nos anos 50, peixaria depois disso, o espaço tem agora “três cantos, ou encantos”: a livraria, à entrada, com uma parede vermelha dada a exposições; uma cafetaria (com chás, cervejas e bolachas caseiras), mesas dadas a conversas longas, um sofá em meia lua, uma mesa vermelha inundada de memórias por onde passaram, entre outros, Alberto Pimenta e Manuel António Pina; e um jardim exterior, onde o gato da vizinha se passeia e o Porto parece ter feito uma pausa.
Mais do que uma associação onde “a revolução é um repto”, a Gato Vadio é abrigo, ponto de encontro, local onde se tece a cidade e borbulham ideias. Por ali passam muitos estudantes, de cá e de Erasmus, muitos académicos, reformados, amantes de livros, gente preocupada com a cidade a saque a fazer planos para pequenas revoluções. Os colectivos e associações da cidade vivem a batalha pelo direito às suas próprias casas. Nos últimos tempos, fechou a Sol Pele, perdeu-se a Leitura, a Trezor deverá encerrar até ao final do ano, tremeram a Maumaus e a Cossoul, em Lisboa. E há quem reivindique responsabilidades às autarquias: seria possível dar-lhes algum apoio, com cedência de espaços ou garantia de rendas a preços controlados? Quando a 1 de Abril a porta do número 281 se fechar, não se abrirá outra para o Gato morar. A associação, esperam, resistirá. Mas de roupa nómada, pousando apenas de quando em vez em locais que eventualmente venham a ser cedidos. “Há o espaço, o espírito, este ar que se respira”, comenta Isabel Camarinha a olhar em volta: “O Gato é isto”. Resta a crença nas sete vidas dos felinos: se o Gato cai sempre de pé, talvez algo se preserve.