Um Don Juan para o século XXI lisboeta
Durante quatro semanas, entre 7 de Novembro e 2 de Dezembro, no São Luiz, Pedro Gil transporta o seu Don Juan para a actualidade. Uma comédia escrita por um actor, nascida de uma visita ao Museu do Aljube.
Don Juan chegou a Pedro Gil por caminhos matreiros e muito pouco óbvios. Nem com uma abastada dose de boa vontade se poderia traçar uma linha recta entre o Museu do Aljube e o mítico sedutor do século XVII. Mas foi mesmo numa visita à antiga prisão do Estado Novo, nas proximidades da Sé lisboeta, que a atenção daquele que estamos habituados a ver como actor de peças com assinatura de Tiago Rodrigues, Tónan Quito ou Gonçalo Amorim ficou presa ao enunciado de cinco nãos da ditadura portuguesa em letras garrafais: “Não discutimos a pátria; Não discutimos a autoridade; Não discutimos a família; Não discutimos o trabalho; Não discutimos Deus.” E foi ali, diante daquele novelo de nãos, há coisa de dois anos, que Pedro Gil seguiu mentalmente as pistas que o levaram até Sevilha e decidiu que estava na hora de escrever o seu Don Juan.
“O Don Juan é uma espécie de vilão que questiona esses cinco nãos”, justifica ao Ípsilon. Esse momento de revelação traria ainda uma outra conclusão quase imediata: saber-se neto de um homem que estivera preso naquele espaço pelo regime salazarista, “neto de um tempo em que não se podia discutir tudo aquilo”, fê-lo sentir que, até certo ponto, o museu não encerrava aquelas palavras no passado e tornava-as matéria presente, implicando-o na herança daquele tempo histórico. Daí que ao escrever o seu Don Juan, para ser levado à cena no Teatro São Luiz, em Lisboa, em Novembro e Dezembro de 2018, Pedro Gil quisesse também migrá-lo para o presente, levando à letra a ideia de “trazer os clássicos para os dias de hoje”.
Mas não é por aí que começa Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade. Bem antes do século XXI, o sedutor sevilhano passeia-se alegremente pelo seu tempo, atemorizando “noivos ao alvorecer barbeando-se à beira-rio” e “raparigas na ordenha com a vasilha entre as pernas”. Diz quem o viu que é a “reencarnação de Belzebu” e que no seu “sangue nadam cobras”. “Dizem que é um mestre das palavras e dos olhares, brilhante nas artes do disfarce e da fuga, um admirável mentiroso, virtuoso espadachim, exímio bailarino, hábil amante”, lança a voz da narradora sem disfarçar um tanto de admiração. E é uma tal ameaça vil à honradez das virginais meninas que os pais teriam de ser tão vigilantes quanto o seriam séculos depois quando uma campanha publicitária (apontada ao coração da rebeldia adolescente) apresentava um certo grupo de rock inglês perguntando “Deixaria a sua filha casar com um Rolling Stone?”
Pedro Gil segue de perto os ingredientes que compõem o cânone das várias versões da história de Don Juan: seduz mulheres – incluindo uma freira –, faz-se passar pelo marido no escuro para se aproveitar de uma esposa indefesa, engana várias das suas amantes ao mesmo tempo, mascara-se, é auxiliado por um criado, encontra a estátua de um homem que matou e convida-a para uma ceia, etc. À medida que avança pela história, injectando-lhe uma bem-vinda dose de humor, Pedro Gil vai preparando o caminho para a encruzilhada em que se livrará do cânone para largar Don Juan na cidade de Lisboa tal como hoje a conhecemos. “O gozo” que dá em mexer numa figura e num mito que pertence ao passado”, admite, “é pôr a personagem a viver novas situações. Senão não o faria. Não faria a peça se fosse colocar o Don Juan às mesmas situações que já vi ou já ouvi em peças, romances ou filmes. E se quero pô-lo em situações novas, se o quero estar aos limites, tenho de criar um novo tabuleiro de jogo.”
O novo tabuleiro de jogo começa a ser montado quando Pedro Gil enfia na sua variação de Don Juan uma bruxa que o salva da maldição do comendador – o homem que o sedutor inveterado matou em duelo, pai de uma rapariga que descreve como tendo “um ventre que sabia a melão fresco numa tarde de Verão”. E é a bruxa que, para lhe permitir a fuga desse fantasma que se prepara para puxá-lo sem piedade para os confins do inferno, lança Don Juan, como um par de dados, para o aleatório século XXI. Este nosso Don Juan foge também ao cânone quando não se deixa apanhar pela maldição e finta, por momentos, a atracção pela morte que é uma sombra constante do sevilhano. Ao iludir essa sombra, damos de caras com um Don Juan “mais medricas ou mais esperto do que os outros” – cabe ao freguês-espectador julgar. Mesmo se o cobarde e o ardiloso convivem, com frequência e de sorriso cúmplice, no mesmo corpo.
Atirado para o futuro, Don Juan há-de sujeitar-se a uma entrevista de emprego para empregada de limpeza num escritório de advogados, disfarçando-se de mulher sul-americana, que pelo meio do humor denuncia a situação de fragilidade da imigração. É uma situação caricata, em que se vê vítima de assédio sexual, mas em que é impossível não ler tanto um castigo pelas suas acções passadas quanto uma actualização de conceitos – Don Juan, o sedutor, era também Don Juan, o abusador, enfiando-se debaixo dos lençóis de mulheres que julgavam partilhar a intimidade com outro homem. Da mesma maneira que o seu talento para se safar de situações em que se vê encurralado desembainhando apenas a palavra há-de levá-lo a concluir que está na posse de “uma nova fé para um novo tempo”. Ou seja: a mentira. “É a ela que deves venerar e é ela que deves pregar, tens de os libertar da tirania da verdade”, proclama.
Sem forçar a mão em relação a estes sintomas vivos do presente, Pedro Gil reconhece que foi a própria escrita a encaminhá-lo para situações que se tornam, de súbido, reconhecíveis enquanto intromissões da realidade. “Se isso está lá e aparece”, acredita, “é porque formalmente é possível e porque, em última análise, sou eu que estou a escrever e transporto isso comigo. Todo o perigo que encerra uma figura como o Don Juan também por isso me atrai imenso.” Mas não nega, da sua parte, uma consciente “sacanice” ao enviar Don Juan para o futuro de bolsos vazios. Por muito que as redes sociais possam vir a transformar essa condição num ápice.
Tão triste, tão triste que tem graça
Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade vai colocando o seu protagonista diante dos ingredientes identificados desde a primeira hora, confrontando-o com “o trabalho, a pátria, a autoridade, a família, o casamento, Deus, o feminino, a mortalidade”. Mas nada disto foi especialmente premeditado. Sabendo que, por caminhos mais ou menos tortuosos, havia de passar por estas temáticas, Pedro Gil diz que deixou “a bola rolar” e foi o trabalho de escrita “a deixar vir ao de cima aquilo que tinha de vir”. O modelo adoptado, a comédia, pode dizer-se que é uma inevitabilidade “no sentido em que a vida só pode servir para rir, a própria vida é uma comédia”. “Chamo-lhe comédia no sentido trágico, no sentido de que é tão triste, tão friste que só pode ter graça.”
Se o tom é o de comédia, o vigor e a qualidade visual da sua escrita é a de um actor. Na sua descrição, Pedro Gil escreve “como se improvisasse enquanto actor”, como se um computador registasse as palavras experimentadas num ensaio e as transformasse num documento pronto a levar para palco, só que em vez de se servir do corpo enquanto material recorre apenas às palavras. “É uma escrita performativa, uma escrita de acção”, diz, porque é fundada precisamente naquele que é o seu métier – actor de teatro. Daí que, pensado para a voz e para o corpo, este Don Juan faz-se de um texto em constante estímulo à acção e ao diálogo.
É também mais um degrau da sua procura enquanto autor, a procura por “uma zona de expressão” iniciada em 2006 com Homem-Legenda, e demasiado intermitente até agora – depois houve Mona Lisa Show, Enquanto Vivermos e algumas co-criações, mas estava sobretudo focado no seu trabalho de actor –, em que assume um traço comum talvez definível por “uma comédia associada a uma violência tão violenta que se torna cómica e a um certo lado provocatório”. A intermitência de autor, responde Gil, é decorrente não apenas de escrever somente quanto tem realmente de deitar para fora – “Não houve peças ou textos que quis escrever e não escrevi, não me estive a sacrificar por outra coisa”, garante –, mas também pela concentração numa experiência cinematográfica ainda por revelar a que se tem dedicado nos últimos anos e à constante pesquisa que tem desenvolvido como actor – e que é, afinal de contas, a espinha dorsal do seu trabalho. “Mas não separo este trabalho autoral do outro porque o meu contributo como actor nos projectos das pessoas com quem trabalho é colaborativo.”
Lembrando Charlie Chaplin – autor dos argumentos que realizava e interpretava – ou John Cassavetes – que concebe o seu cinema “como actor que também é” –, Pedro Gil foi reclamando o espaço de autor e de encenador em paralelo. Em Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade, é responsável pelo texto, pela encenação e dá voz e corpo a várias personagens (num elenco de que fazem ainda parte Tónan Quito, Raquel Castro, Miguel Loureiro, Rita Calçada Bastos e Filipa Matta), da mesma forma que foi assistindo a Tiago Rodrigues, Jorge Andrade, Teatro Praga, Joana Craveiro ou Gonçalo Waddington servirem de exemplo ao criarem linguagens que assumem várias dimensões criativas em simultâneo.
Ao optar por trabalhar sobretudo como actor (exclusivamente de teatro), mantendo a sua disponbilidade para aceitar projectos vindos de criadores diferentes, Pedro Gil sabe que conquistou a independência de não estar ligado a uma companhia e a uma estética particulares, ao mesmo tempo que não ignora o quanto essa versatilidade pode acarretar falta de profundidade no trabalho com os outros. Por agora, não estando nos seus planos formar uma companhia e admitindo a possibilidade de que o seu ritmo autoral acelere nos próximos tempos, faz deste Don Juan Esfaqueado na Avenida da Liberdade uma arma para lutar contra a ditadura dos “espectáculos de quatro dias” que se tornaram norma nos teatros portugueses depois de a crise de 2008 ter assaltado os orçamentos de salas e estruturas.
No São Luiz, Don Juan estará em cena quatro semanas, de 7 de Novembro a 2 de Dezembro, na Sala Mário Viegas, para combater uma tendência que Pedro Gil acredita poder atingir o cúmulo de tornar desnecessário decorar texto para ir a palco durante um mero fim-de-semana e na segunda-feira já estar a avançar para outro espectáculo montado em cima do joelho. A cenografia, os adereços e os figurinos, aliás, já andam meio desaparecidos do teatro actual, como se a carrinha que os transportava fosse repetidamente assaltada. Pedro Gil precisa de mais tempo com as pessoas – com aquelas com quem partilha o palco e com todas as outras que se substituem nas cadeiras do teatro noite após noite. Nem que seja para testar até que ponto Don Juan conseguirá sobreviver na Lisboa de Novembro de 2018