Os atribulados caminhos legais do Senhor
Como a liberdade de expressão pode ser sacrificada no altar do respeito à religião.
A blasfémia é um dito ímpio ou insultante contra o que se considera sagrado ou a difamação do nome de Deus. Em Portugal, o Código Penal previa diversos crimes contra a religião, estipulando que aquele que faltasse ao respeito à religião do reino, católica, apostólica, romana seria condenado na pena de prisão até dois anos e multa, e dava como exemplos da falta de respeito “injuriar a mesma religião publicamente em qualquer dogma, por factos ou palavras”, ou “tentar pelos mesmos meios propagar doutrinas contrárias aos dogmas católicos definidos pela Igreja”. Graças a Deus, em 1911, após a implantação da República, deixámos de ter esse crime nos nossos códigos.
Na Irlanda, só na semana passada se manifestou essa mesma vontade divina, através de um referendo – vox Populi, vox Dei – que retirou da Constituição a criminalização da blasfémia. Já no Paquistão, os caminhos de Deus são outros: a lei anti-blasfémia mantém-se e rigorosa, mas Aasia Bibi, uma jovem cristã condenada à morte por blasfémia e que se encontrava no corredor da morte há nove anos, vai ser solta graças a uma iluminada decisão do Supremo Tribunal que, esta semana em recurso, a absolveu. Já começaram as ameaças públicas de morte contra os juízes do Supremo Tribunal, bem como as manifestações e os actos de violência por parte dos muçulmanos radicais organizados que, ao longo destes anos, assassinaram diversas figuras públicas que se tinham manifestado contra a condenação de Aasia Bibi. E o presidente do Supremo Tribunal já teve de se justificar publicamente: "Estamos prontos para nos sacrificarmos pela honra do Profeta. Mas não somos juízes só para os muçulmanos. Se não há provas contra alguém, como podemos condená-lo?”
Voltando à Europa, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), na semana passada, no caso E.S. contra a Áustria, sacrificou a liberdade de expressão no altar do respeito à religião, ao considerar que a Áustria não tinha violado a liberdade de expressão de uma sua cidadã que foi condenada com base numa lei anti-blasfémia.
Erika é uma militante do Partido da Liberdade, um partido nacionalista, de direita, que actualmente faz parte do governo austríaco, e num seminário do seu partido aberto a toda a gente afirmou: “Um dos maiores problemas que enfrentamos hoje é que Maomé é visto como o homem ideal, o humano perfeito, o muçulmano perfeito. Isso significa que o maior mandamento para um muçulmano do sexo masculino é imitar Maomé, para viver sua vida. O que não está de acordo com as nossas leis e padrões sociais. Porque ele era um senhor da guerra, tinha muitas mulheres, para dizer assim, e gostava de fazer isso com crianças. E de acordo com os nossos padrões, ele não era um ser humano perfeito. Temos enormes problemas com isso hoje, os muçulmanos entram em conflito com a democracia e o nosso sistema de valores...” E Erika, referindo-se ao casamento de Maomé, com 56 anos de idade, com Aisaha, uma criança de seis anos, e à consumação do mesmo casamento quando esta tinha nove anos, perguntou: “O que é que chamamos a isto, se não pedofilia?”
Os tribunais austríacos consideraram que Erika tinha todo o direito de criticar os casamentos com crianças – que eram considerados normais no tempo de vida de Maomé –, mas não podia sugerir que Maomé tinha um desejo sexual por crianças como fizera ao acusá-lo de pedofilia, pelo que cometera o crime de depreciação de doutrinas religiosas que prevê uma pena até seis meses de prisão ou multa por um período de até 360 dias, para quem, de forma que possa causar justificada indignação, “deprecie publicamente ou insulte uma pessoa ou um objecto que seja objecto de veneração de uma igreja ou comunidade religiosa estabelecida no país”.
Erika recorreu ao TEDH invocando que a sua liberdade de expressão, garantida pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e que a Áustria estava obrigada a respeitar, fora violada, mas os juízes de Estrasburgo consideraram que a decisão austríaca estava dentro da margem de liberdade dos Estados na interpretação e aplicação da CEDH e, por unanimidade, declararam que a Áustria não tinha violado a CEDH.
Uma decisão do TEDH que põe de lado o carácter matricial da liberdade de expressão e se curva perante a necessidade de não irritar os Estados-membros...