A violência sexual na Coreia do Norte faz parte do dia-a-dia

Relatório extenso da Human Rights Watch sugere que a violência sexual é endémica na Coreia do Norte. “Acontece tantas vezes que ninguém pensa que seja um grande problema”.

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Reuters/STRINGER

Os abusos sexuais contra mulheres na Coreia do Norte são de tal forma endémicos que nem sequer existe uma palavra para os descrever e fazem já parte do quotidiano das norte-coreanas. Esta é a conclusão de um extenso relatório da organização não-governamental Human Rights Watch.

Este cenário de abusos sexuais generalizados está descrito no relatório, intitulado “'Choras à noite, mas não sabes porquê’: violência sexual contra as mulheres na Coreia do Norte”, que foi apresentado na quinta-feira em Seul, capital sul-coreana. Foi feito com base nos testemunhos de 54 norte-coreanos que fugiram do seu país desde 2011, ano em que Kim Jong-un subiu ao poder, e oito ex-funcionários do regime exilados.

Enquanto o mundo andou no último ano de olhos postos no movimento #MeToo, que denunciou centenas de casos de assédio e abusos sexuais por parte de pessoas mais ou menos conhecidas, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, na Coreia do Norte, país cujo regime comunista o tornou o mais fechado do mundo, não só as ondas de choque deste movimento não se fizeram sentir, como os crimes que este denuncia são abundantes, diários e cometidos por pessoas com influência e poder.

Uma das mulheres entrevistadas para o relatório é Oh Jung Hee, vendedora na cidade fronteiriça de Hyesan. Fugiu da Coreia do Norte em 2014 e relata a forma como os vigilantes do mercado onde trabalhava lhe pediam favores, muitas vezes sexuais: “Fui uma vítima muitas vezes… Quando lhes apetecia, os guardas do mercado ou funcionários da polícia diziam-me para os seguir para uma habitação vazia e fora do mercado, ou outro lugar que escolhiam. O que podemos fazer? Consideram-nos brinquedos [sexuais]… Nós estamos à mercê dos homens. Agora, as mulheres não podem sobreviver se não tiverem homens com poder ao perto.”

O relatório de 86 páginas, que demorou dois anos a ser elaborado, é claro a concluir que, “ainda que a violência sexual e de género seja uma preocupação global, cada vez mais indícios sugerem que é endémica na Coreia do Norte”.

Situações como a que relata Oh Jung Hee são de tal forma generalizadas que as mulheres se submetem com naturalidade e os abusados pouca consciência têm de estar a fazer alguma coisa de errado. “Acontece tantas vezes que ninguém pensa que seja um grande problema”, continua a norte-coreana. “Nós nem nos apercebemos quando estamos chateadas. Mas somos humanos, e sentimos. Por isso, por vezes, do nada, choras à noite e não sabes porquê.”

“A violência sexual na Coreia do Norte é um segredo aberto, amplamente tolerado e sobre o qual não se actua”, explica Kenneth Roth, director-executivo da Human Rights Watch.

A violação é um crime na Coreia do Norte, e a propaganda de Pyongyang exalta as boas condições de vida das mulheres neste país. Contam-se pelos dedos das mãos as condenações por este crime em cada ano. As mulheres são, assim, particularmente vulneráveis neste país, tal como os opositores do regime e dissidentes.

Mas, já em 2014, um relatório das Nações Unidas sobre a violação de Direitos Humanos na Coreia do Norte, falava de violações, abortos forçados e outro tipo de abusos. “A violência contra as mulheres não se limita aos lares, e é comum verem-se mulheres a serem agredidas e sexualmente assediadas em público”, dizia o documento.

Os homens com poder actuam com impunidade e, “quando um guarda ou polícia ‘escolhe’ uma mulher, ela não tem outra opção do que cumprir qualquer exigência que ele faça, seja sexo, dinheiro, ou outros favores”, diz ainda o relatório publicado esta semana.

Das testemunhas que falaram com a Human Rigths Watch, 21 vendedoras – profissão mais comum entre as mulheres, que muitas vezes servem de sustento para toda a família – dizem ter sido vítimas de violência sexual ou de assédio e abusos por parte de polícias, guardas prisionais, advogados ou outros homens com cargos de responsabilidade.

É o que conta Kim Un A, que fugiu em 2015, quando foi interrogada depois de ter sido detida ao tentar escapar do país pela primeira vez, em 2012: “Quase de cada vez que me interrogava, tocava-me na cara, nas mãos e agarrava-me as pernas ao redor da púbis. Então eu pensava que isso não tinha nada de mal. Sentia-me incomodada e não gostava, mas não me ocorria outra coisa.”

“Esta não é uma questão que ameace o regime”, diz Roth à Reuters. “É por isso que é particularmente chocante que o Governo não esteja a fazer nada para impedir os abusos sexuais dos seus funcionários”.

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