Música que invade, música que viaja

Ouvir a música de Fausto Bordalo Dias, nas suas múltiplas viagens, é sentir Portugal no seu jeito mais nobre, o da abertura ao mundo.

O fenómeno não é novo, mas tem vindo a agravar-se com o tempo. Sendo a música tão antiga, a forma como ela se relaciona com os humanos, que a criam e que a ouvem, tem vindo a ser moldada ao correr dos séculos e das modas. E se os meios de audição, dos aparelhos (simples ou complexos) às salas de espectáculo, são cada vez mais sofisticados e tecnologicamente avançados, já a relação com a música tende, pelo contrário, a piorar. É o que afirma, com clareza, o director da muito recomendável revista Áudio e Cinema em Casa, em editorial, na recém-lançada edição de Novembro-Dezembro. Escreve Jorge Gonçalves: “Ao tornar-se tão omnipresente e tendo tanta compressão [MP3, streaming], a música tornou-se um objecto consumível, mesmo descartável, que está a todo o momento nos nossos ouvidos mas a que, de tão ubíqua, deixámos de tomar atenção.” Aqui, perdem os ouvintes. Mas perdem também os que a fazem, compositores ou intérpretes, porque, escreve ele, “viram as compensações financeiras que lhes são devidas diminuírem de forma drástica. Claro que a cupidez das editoras tem uma boa percentagem de culpa pelo estado actual das coisas, mas quanto a isso é tarde para se fazer alguma coisa.” Como consequência disto, diz ainda Jorge Gonçalves, foi encontrada uma solução “miraculosa”: concertos em excesso à roda do mundo. “O resultado é que, como os artistas são seres humanos, o cansaço e o tédio instalam-se (…), temos demasiados momentos em que eles tocam por obrigação, sem alma e sem entusiasmo, transformando aquele que deveria ser um momento privilegiado de contacto entre os intérpretes, a música e os ouvintes, quase como que numa obrigação que tem de se cumprir.” Correndo a música “o risco de se tornar uma coisa chata, sem alma (…), e isso nunca deveria poder acontecer.” Bom, o ideal será mesmo ler o texto todo, mas estes excertos já nos dão ideia do que está em causa: invocando o interesse da música e dos músicos, estaremos a arruinar ambos.

Haverá maneira de atenuar tais malefícios? Na verdade, sim. E não uma, mas várias. Um bom começo seria o regresso a audições mais atentas, directamente de discos ou ficheiros integrais, sem as indecorosas compressões de áudio que se tornaram moda; ouvir música pelo prazer de ouvir música e não só como “banda sonora” para outros afazeres. Outra medida seria privilegiar os ficheiros integrais e legais e renunciar de vez à pirataria, que não prejudica apenas uma indústria mal comportada mas também (e muito) os artistas e os editores honestos. Outra medida ainda, e esta não é fácil, é encarar os concertos como o tal “momento privilegiado de contacto entre os intérpretes, a música e os ouvintes” e não como lugar onde a música conta menos do que (“telemóveis ao alto”) as filmagens. Isto obrigaria a reorientar hábitos e reeducar o gosto, o que só pode ser tarefa individual. Mas os músicos teriam muito a ganhar, se lhes escutassem verdadeiramente as obras (de modo crítico) em lugar de as usarem como “papel de parede” em decorações do espaço.

Nos antípodas deste modo de “usar” a música está Fausto Bordalo Dias. Nem os seus discos, de demorado e aperfeiçoado apuro, se banalizaram na torrente das edições, nem os seus espectáculos obedecem a qualquer vertigem de urgências comerciais ou outras. Prova disso, o seu mais recente concerto no CCB, em Belém, esgotou rapidamente, meses antes da data (26 de Outubro) e praticamente sem cartazes ou qualquer anúncio de monta. E foi diante de uma audiência interessada, a encher todo o auditório, que ele viajou pela trilogia que dedicou, em discos duplos (três notáveis obras-primas), à diáspora portuguesa de navegadores e exploradores na sua procura de novos mundos: Por Este Rio Acima (1982), Crónicas da Terra Ardente (1994) e Em Busca das Montanhas Azuis (2011). Não só a estas. Já que, como ele alertou, A Trilogia (assim se intitulou o espectáculo) é na verdade uma tetralogia. Porque a estes títulos há que juntar Para Além das Cordilheiras (1987), onde a viagem se estende pela Europa, esse outro elo e destino português, que antecede o das Áfricas e Orientes e lhe sucede, findo o Império. A esta viagem musical, belíssima e inspirada, devemos voltar agora, quando a Europa se revolve entre sombras. Ouvir esta música é sentir Portugal no seu jeito mais nobre, o da abertura ao mundo.

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