A Europa arrisca-se a mais um compasso de espera
Merkel deixa um vazio de liderança que será muito difícil de preencher.
1. Não chega a ser uma total novidade para os parceiros europeus da Alemanha. A vida já corria relativamente mal à chanceler desde as eleições de Setembro do ano passado para ser possível prever que, mais tarde ou mais cedo, teria de sair de cena. Angela Merkel vai no seu quarto mandato à frente do governo de Berlim. As negociações para formar governo depois da sua quarta vitória eleitoral foram penosas. A “grande coligação” acabou por ser uma solução de recurso, uma união de fraquezas que se tornou indispensável face à entrada em força da extrema-direita no Bundestag.
Os resultados das eleições no Land de Hesse (Frankfurt) no domingo passado, com uma forte perda para a CDU e para o SPD, acabaram por funcionar como o sinal de partida. Merkel foi igual a si própria. Não precisou de muitas palavras ou de grande retórica para dizer que sairia. “Não nasci chanceler e nunca me esqueci disso.” Mas a questão que hoje os analistas debatem na imprensa europeia é outra: o que será a Europa depois de Angela Merkel? As perspectivas não são animadoras.
2. A União Europeia ainda não acabou de lamber as feridas da maior crise de sempre da sua existência. Há reformas importantes por fazer na Zona Euro. Prepara-se para iniciar um novo ciclo, como escreveu ontem o Financial Times em editorial. Marcado pelo “Brexit”, por eleições para o Parlamento Europeu que vão resultar num quadro político muito diferente daquele que existiu até hoje, pela escolha de quem deverá presidir à Comissão, ao BCE e ao Conselho Europeu. “Os partidos de extrema-direita, através da Europa, estão a preparar um desafio concertado à democracia liberal nas eleições de Maio”, escreve Constanze Stelzenmuller, da Brookings Institution, também no Financial Times.
Acrescenta o editorial do diário britânico que a saída de Merkel torna esta mudança de ciclo mais difícil e mais imprevisível. Merkel “foi uma influência forte e estabilizadora” na Europa. Até ao fim do seu mandato como chanceler (se chegar lá), será uma líder enfraquecida por razões internas, deixando um vazio na liderança europeia que vai levar tempo a preencher.
3. Na Europa, nada se faz contra a vontade de Berlim ou sem o seu envolvimento. É igualmente verdade que nenhuma grande iniciativa terá sucesso sem um acordo entre Paris e Berlim. É assim desde a fundação da Comunidade. Quando os dois lados se entendem, quase sempre à custa de concessões mútuas, os restantes países conseguem entender-se também. Mas essa relação indispensável tem sido marcada, nos últimos anos, por sucessivos desencontros. O anterior Presidente francês, François Hollande, revelou-se demasiado fraco para conseguir um entendimento com a chanceler em matéria de reforma do euro. A Alemanha não acreditava na sua capacidade para reformar a economia francesa.
Quando Emmanuel Macron foi eleito, em Maio do ano passado, a imprensa alemã saudou a entrada em cena de um parceiro forte, capaz de estabelecer com Berlim um programa para relançar a União. Merkel enfrentou o eleitorado alemão em Setembro do mesmo ano. As coisas não aconteceram exactamente como estavam programadas. A chanceler levou quase seis meses a formar o seu novo governo, enquanto Macron esperava pela resposta alemã ao seu célebre discurso da Sorbonne, poucos dias antes da reeleição da chanceler. A resposta levou tempo a chegar. Apenas em Junho deste ano, os dois tornaram pública a sua posição comum.
A Declaração de Meseberg, não indo tão longe como o Presidente francês desejaria, levou os analistas a considerar que a parceria franco-alemã “estava de novo em movimento”. Alguns passos importantes foram dados, nomeadamente em matéria de defesa europeia. Merkel fez algumas cedências quanto à reforma do euro defendida por Macron. O calendário arrastou-se. Judy Dempsey, do Carnegie Europe, culpa a chanceler de ter permitido aos países do Norte consolidar a sua oposição a qualquer reforma da união monetária que implique um orçamento próprio ou a qualquer noção de solidariedade que permita às economias do Sul levar a cabo reformas mais exigentes.
A imigração apoderou-se da agenda europeia com uma força inesperada, graças à emergência de partidos políticos populistas e nacionalistas que fizeram do tema a sua razão de ser. O “momento” para o relançamento foi-se esgotando. No melhor dos cenários, o anúncio da saída de Merkel e os problemas internos de Macron vão, muito provavelmente, atrasar ainda mais agenda de Meseberg.
4. A Europa também deve à chanceler a condução firme da crise euro, pelo menos a partir do momento em que percebeu que o fim da moeda única seria o fim da União Europeia. Foi ela que conseguiu unir os europeus durante a crise ucraniana, enfrentando Vladimir Putin e decretando sanções contra a Rússia, que se mantêm até hoje. Mais uma vez, foi contra a maré da tradicional inclinação alemã pela aproximação à Rússia. Foi ela que deu o exemplo de humanidade e de coragem quando, em plena guerra na Síria, abriu as portas do seu país a quase um milhão de refugiados. Muitos analistas insistem em que foi o seu maior erro político. Outros lembram que o que fez em nome do que ela entende serem os valores europeus.
A Europa habituou-se a ela. “Há alguma mitologia simplista na admiração por Merkel como a figura que melhor simboliza a líder anti-Trump”, escreve Rafael Behr, no Guardian. “Mas a simples existência desta hagiografia exprime o seu apego à estabilidade, à maturidade e à dignidade nos assuntos internacionais.” Merkel deixa um vazio de liderança que será muito difícil de preencher. Num quadro em que a Europa não tem aliados na defesa de uma ordem internacional assente na cooperação e no multilateralismo e em que o Presidente dos Estados Unidos, pela primeira vez desde a II Guerra, não mexerá um dedo para preservar a integração europeia.