Se o mundo imitasse a pegada ecológica de Portugal precisávamos de 2,2 planetas
Um novo alerta sobre a débil saúde do planeta. E uma chamada de atenção para a necessidade de travar a sua degradação. Relatório da WWF mostra como continuamos a empurrar os ecossistemas para um limite.
Mesmo em anos de crise, com o recuo do consumo e da actividade económica portuguesa, seriam precisos 2,19 planetas para repôr os recursos naturais se todas as pessoas do mundo consumissem como os portugueses. Este é o preocupante saldo anunciado para Portugal no Relatório Planeta Vivo, divulgado esta terça-feira e que é publicado bianualmente pela organização não-governamental ambientalista WWF. Dado que desde 2014 (ano de referência destes dados), se deu um boom do turismo e a recuperação do poder de compra, o próximo balanço sobre a pegada ecológica pode não reflectir a mesma tendência de diminuição.
O relatório que mede o pulso ao estado do planeta volta a fazer um retrato alarmante: a actividade humana continua a empurrar os ecossistemas que sustentam a vida na Terra para um limite. Feitas as contas, para responder à pegada mundial era necessário termos 1,69 planetas.
Em relação a Portugal, o documento nota que a crise levou a um recuo da pegada ecológica do país. Esta é medida em hectares globais (gha) por pessoa, ou seja, a área que cada um precisa para produzir o que consome e absorver o lixo que produz. O país passou de uma pegada de 3,9 gha por pessoa em 2012, que o colocava na 59ª posição a nível mundial para 3,69 em 2018, baixando para o 66º lugar. No entanto, o consumo continua a estar bem longe de acompanhar a capacidade de regeneração dos ecossistemas. A chamada biocapacidade é, em Portugal, 1,27 gha por pessoa e tem-se mantido mais ou menos constante desde 1961, alheia à pressão que os padrões de consumo impõem ao planeta desde os anos 90.
Em primeiro lugar no ranking da pegada ecológica, enquanto país com pior desempenho ambiental, surge o Qatar e antes de Portugal aparecem países como os EUA, Austrália, Canadá, França, Itália, Reino Unido, Países Baixos, Bélgica, Espanha, Suíça e Alemanha. Portugal está, aliás, abaixo da média europeia, que era de 4,69 gha por pessoa em 2018 e acima da mundial que é de 2,84 gha por pessoa. O físico e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, Filipe Duarte Santos, aponta aqui o facto de a população portuguesa exercer uma pressão muito menor nos ecossistemas quando comparado com países como a Holanda, onde a densidade populacional é muito superior.
A WWF também identifica boas notícias: o carbono, ainda que constitua 57% da pegada ecológica dos portugueses, foi a componente que mais decresceu. Em 2004, pesava 63% neste cálculo. “A isto está naturalmente associado o consumo, mas também a alteração das fontes de produção de energia nacional, fruto da aposta nas energias renováveis”, diz a WWF Portugal em comunicado.
“A emissão de gases com efeito de estufa diminuiu desde 2005, mas tem vindo a subir no período pós-crise. Também porque as secas se tornaram mais frequentes e nesses períodos temos que recorrer às centrais de carvão que emitem muito CO2 [dióxido de carbono] para a atmosfera”, afirma Filipe Duarte Santos.
Perda de 60% da vida selvagem
Tal como no primeiro relatório, há 20 anos, a WWF continua a calcular o Índice do Planeta Vivo, um indicador que traça as tendências da abundância global de vida selvagem, calculado a partir de dados recolhidos em intervalos regulares de tempo em várias fontes (relatórios de governos, jornais, bases de dados). Para 2014, foram tidas em conta mais de 16 mil populações de 4005 espécies. E chegou-se à conclusão de que as populações mundiais de peixes, aves, mamíferos, anfíbios e répteis diminuíram 60% entre 1970 – ano a partir do qual há informação robusta para determinar o início de vários indicadores – e 2014.
Uma análise mais fina permite perceber é que nos trópicos que extinção é especialmente pronunciada, sendo que a região da América do Sul e Central sofreu o declínio mais acentuado, de 89%. As populações de espécies de água doce também diminuíram drasticamente, com o índice que as mede a demonstrar uma diminuição de 83% desde 1970 até 2014. E isto é particularmente preocupante, nota a WWF, porque estes habitats (lagos, rios e zonas húmidas), ricos em biodiversidade, estão fortemente expostos a múltiplas ameaças: das espécies invasoras à pesca excessiva, da poluição às mudanças nos ecossistemas devido, por exemplo, ao aumento da temperatura da água.
E para a organização não-governamental não há dúvidas de que as principais ameaças a estas espécies são as actividades humanas (que, em última análise, dependem sempre de serviços prestados pela natureza). “Uma avaliação recente descobriu que apenas um quarto do solo está substancialmente livre dos impactos das actividades humanas. Prevê-se que diminua para apenas um décimo até 2050”, nota o relatório. A perda de floresta é preocupante: embora tenha abrandado globalmente, acelerou nas florestas tropicais, redutos com altos níveis de biodiversidade no planeta.
“A degradação em curso tem muitos impactos nas espécies, na qualidade dos habitats e no funcionamento dos ecossistemas. Dois estudos recentes mostraram reduções drásticas no número de abelhas e outros polinizadores e nos riscos para a biodiversidade do solo, fundamentais para sustentar a produção de alimentos e outros serviços dos ecossistemas”, detalha a WWF. E Filipe Duarte Santos não prevê melhorias nesta matéria com a eleição de um presidente brasileiro que "promete continuar explorar o valor económico" da Amazónia.
O que os cidadãos têm que perceber, diz o físico, é que o crescimento económico já está a ser prejudicado pelo consumo excessivo de recursos, a degradação dos ecossistemas e as alterações climáticas. As matérias-primas, quando escasseiam, tornam-se mais caras. As secas e ondas de calor cada vez mais frequentes têm elevados custos para os Estados. Assim como as acções de mitigação, como as operações de sustentação de arribas e as manobras de combate à erosão, a descontaminação de aquíferos, a limpeza de plásticos do fundo dos mares. “Imagina-se o custo que não terá a protecção da orla costeira no final do século quando o nível médio da água do mar tiver subido um metro”, aponta Filipe Duarte Santos.
Fica então clara a necessidade de uma mudança dramática que coloque consumidores e empresas a olhar para a natureza como algo mais que fonte de rendimento, diz a WWF. E, já havendo compromissos internacionais com metas como a descarbonização da economia, “existe actualmente uma janela de oportunidade única para reverter a tendência”. Por isso, a WWF repete um apelo já este ano feito pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas: que se faça “o mais ambicioso acordo global até agora”, para que “escolhas políticas, financeiras e de consumo” reflictam a ideia de que a humanidade e a natureza podem “prosperar em harmonia num único planeta”.