"Nós estamos a devastar a natureza"

Will Steffen dá um prazo: duas décadas até se perder o gelo do Árctico. Daí irromperá uma cascata de alterações na bio e geosfera, que pode colocar em risco o “sistema de suporte de vida” humana. Certo é que o planeta já ultrapassou, pelo menos, dois pontos de não retorno.

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André Rodrigues

Will Steffen, químico norte-americano de 71 anos e uma das maiores referências na investigação sobre as alterações climáticas, nem sempre olhou para a Terra como um sistema. Começou na química microscópica, passou pelos ecossistemas terrestres, até se dedicar a entender o todo e como a acção humana pode desencadear efeitos em cascata que podem, dentro de poucas décadas, modificar o planeta tal como o conhecemos. “Quando começamos a derrubar as primeiras peças de dominó, dificilmente conseguimos impedir as seguintes de caírem”, diz. Ao fim de quase quatro décadas a estudar as alterações climáticas não lhe restam dúvidas: a manutenção do sistema terrestre não é compatível com os actuais sistemas económico e social. 

Steffen esteve esta semana no Porto para a cerimónia de lançamento da associação da Casa Comum da Humanidade, na qual é presidente da comissão científica.

É químico de formação. Quando e porque é que começou a estudar alterações climáticas?
Quando fiz o doutoramento em 1975, não havia muita informação sobre alterações climáticas, nem interesse nisso. Era apenas a área em que os físicos da atmosfera trabalhavam.

Eu estive na química, estudei Cristalografia de Raios-X [técnica de difracção de Raios-X para determinar a estrutura tridimensional de cristais], no início da revolução tecnológica. Tentei depois outras áreas da química, até me envolver na física ambiental. Nos anos 80, as alterações climáticas começaram a tornar-se um assunto, mas a grande mudança aconteceu em 1990. O Conselho Internacional de Ciência começou um novo programa de investigação, o Programa Internacional Geosfera-Biosfera [IGBP, na sigla em inglês 1987-2015], que congregava cientistas de todo o mundo para olhar de forma sistémica para a Terra. Fui coordenador de um dos projectos, sobre os ecossistemas terrestres. Em 1998, fui para director do IGBP. Geria o programa todo: terra, oceano, atmosfera, clima. E juntámos os cientistas sociais, para integrar os seres humanos como agentes interactivos.

Quando o programa fez dez anos fizemos uma síntese do que aprendemos. Escrevemos um livro que se pode considerar o primeiro com uma visão abrangente do sistema terrestre [Global Change and the Earth System, 2004]. Foi nessa altura que o Paul Crutzen [Nobel da Química em 1995] introduziu o conceito de Antropoceno – uma nova era geológica.

A partir daí relaciona, nos seus artigos, as alterações climáticas com o início dessa nova era. 
Ainda há duas correntes de pensamento. Uma é a corrente tradicional das alterações climáticas, que vê como isso afecta o clima e como os humanos estão a interagir com o clima. Assenta num legado histórico que dá ênfase à atmosfera. É o caso do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [com sede nas Nações Unidas].

A corrente onde me insiro tem um ponto de partida diferente: o clima é uma manifestação de como o sistema terrestre opera e como ele muda.

Há um consenso na comunidade científica de que o aumento extraordinário das emissões dos gases com efeito de estufa se deve às actividades humanas. Recentemente foi discutida em Portugal uma corrente que nega esse papel. Como responde?
Há uma quantidade absurda de dados disponíveis e essas pessoas claramente não são especialistas em ciências da terra ou ciências climáticas. Não há absolutamente dúvida nenhuma. Obviamente que há uma variação natural da temperatura, mas essa variação acontece dentro de um intervalo muito estreito. Agora esse intervalo está todo desregulado.

De forma mais acentuada desde meados do século XX?
Sim. Houve um pequeno aumento da temperatura a começar à volta de 1850, na sequência da revolução industrial. Cerca de cem anos depois, a temperatura tinha subido cerca de 0,2ºC ou 0,3ºC. Mas desde 1950-1970, os termómetros disparam. 

É o que chama de Grande Aceleração.
Exactamente. Nos dez anos do IGBP, começamos a recolher dados desde 1750, o início da revolução industrial. Escolhemos doze indicadores para representar graficamente a actividade humana, como a população mundial, PIB, turismo internacional, uso de energia, consumo de água, uso de fertilizantes, produção de papel, transportes, telecomunicações,... Os indicadores sobem de forma brutal a partir de 1950.

Depois fizemos doze gráficos semelhantes para o sistema terrestre, com medições de gases com efeito de estufa, ozono estratosférico, temperatura à superfície, acidificação dos oceanos, captura de peixe marítimo, ocupação do solo, degradação da biosfera... Verificamos que alguns sistemas respondem mais devagar que outros, mas em geral é a meio do século XX que se dá a mudança. E aí estava, como dizemos em inglês, the smoking gun. Foi o ser humano que disparou a pistola. 

Num artigo mais recente mediu o risco da Terra perder a sua resiliência e se atingirem pontos de não retorno. Como chegaram a estas conclusões e o que significa?
O estudo é uma análise de risco. Ficou claro que quanto mais quente a Terra fica, mais o risco aumenta. Percebemos que algures entre 1,5ºC e 3ºC [diferença da temperatura média face ao período pré-revolução industrial] vamos entrar numa cascata de efeitos negativos no planeta. Onde? Podemos nunca vir a saber com certeza.

Há um ponto fracturante na Amazónia, onde metade da precipitação é gerada pela evaporação das árvores e do solo e a outra metade vem do Oceano Atlântico, através do vento. O problema é que o clima está a mudar e está-se a cortar a floresta. Vamos chegar a um ponto crítico em que a floresta tropical húmida não vai receber precipitação suficiente, vai começar a morrer naturalmente de seca. Isso origina menos evaporação, que por sua vez provoca menos chuva, depois menos árvores, menos evaporação e este ciclo ganha força. É assim que se desencadeia um ponto de não retorno. No caso da Amazónia estará à volta de um aumento de 2ºC e 20% de desflorestação. Agora estamos um pouco acima do 1ºC e cerca de 18% de desflorestação.

É bastante estúpido descobrir onde assenta um ponto de não retorno ultrapassando-o. Até onde queremos arriscar?

Onde já ultrapassamos o ponto de não retorno?
Há dois pontos que diria, com certeza, que ultrapassamos. Um deles são os recifes de coral. Com a temperatura média actual dos oceanos os recifes estão a passar por um fenómeno de branqueamento. Quando aumentar mais 0,2ºC ou 0,3ºC – o que vai acontecer de certeza porque não podemos ter zero emissões amanhã –, vamos perder uma grande parte dos recifes de coral no mundo.

Outro é o gelo do Árctico. O gelo expande-se no Inverno, contrai-se no Verão. Quando o clima é estável, há sempre limites semelhantes nas estações e entre elas. Mas à medida que aquece, esta área encolhe. Ora, o gelo é um estabilizador do clima, porque reflecte grande parte da luz solar. Por isso à medida que mais gelo derrete, mais água fica exposta ao sol e, sendo escura, absorve mais calor. Gera-se um ciclo. Talvez demore uma década a desaparecer. No máximo duas décadas.

Que efeitos terá?
Se ficarmos sem o gelo do Árctico vamos ter uma aceleração do ritmo de aquecimento global, talvez em 0,1 ºC ou 0,2ºC. Terá um maior efeito no hemisfério norte, devido a dois grandes efeitos dominó no extremo norte do planeta. Um deles é o permafrost [solos permanentemente congelados no Árctico], onde estão armazenadas grandes quantidades de carbono. Esse solo agora começa a aquecer, libertando carbono e bactérias. Ora a reacção química entre as bactérias e o carbono gera calor. Há um novo ciclo. E quando o carbono é decomposto pelas bactérias, emite dióxido de carbono e metano, que, por sua vez, contribuem directamente para o aquecimento global.

O segundo efeito do degelo do Árctico incide nas grandes fortalezas no extremo norte, em especial a Rússia e o Canadá. À medida que as temperaturas sobem, os insectos que existem em número reduzido por não lidarem bem com o frio, como os besouros, começam a reproduzir-se mais rapidamente e as populações aumentam exponencialmente. Mais animais comem mais plantas e fungos das árvores, enfraquecendo a vegetação e tornando-a mais vulnerável a fenómenos externos, como os incêndios.

Quando começamos a derrubar as primeiras peças de dominó, dificilmente conseguimos impedir as seguintes de caírem.

Há uma associação imediata das alterações climáticas às emissões de dióxido de carbono e de óxido nitroso da produção energética, indústria e transportes. O papel das emissões de metano, com origem na agro-pecuária, é negligenciado?
Sim. Das áreas de actividade humana que emitem mais gazes com efeito de estufa (dióxido de carbono, óxido nitroso e metano), a energia é o maior sector. Mas os dois seguintes têm praticamente o mesmo peso: agricultura e transportes. Só depois temos a construção e os resíduos, que em decomposição libertam bastante metano.

A agricultura emite os três gases. Emite CO2, porque a agricultura moderna é essencialmente mecanizada, movida a combustíveis fósseis. O óxido nitroso tem origem, principalmente, nos fertilizantes nitrogenados. E o metano aparece neste cenário por duas razões: [criação de] gado – sustentada pela nossa dieta baseada em carne – com origem no processo de digestão dos animais; e o cultivo de arroz. Quando se faz cultivo em arrozais húmidos, há uma decomposição do solo subterrâneo. Como não é directamente exposto ao ar, esse solo não tem dióxido de carbono. Tem carbono e hidrogénio, CH4 [metano], que borbulha para o campo inundado de arroz. [O metano] é um gás muito mais perigoso que o CO2, por ser mais eficiente na captura de radiação.

Isso leva-o a concluir que o sistema terrestre não é compatível com os actuais sistemas económico e social.
Exactamente. Nós estamos a devastar a natureza. Estamos a produzir e a consumir de tal forma que os ciclos naturais não conseguem absorver de forma suficientemente rápida o que emitimos. Então acumula-se. Começamos por ter poluição local dos oceanos, dos solos, do ar. E desde 1950 temos poluição global.

A resposta da ciência foi, em 2009, a definição dos nove limites do planeta dentro dos quais a vida na Terra está assegurada. Estes indicadores são medidos?
Não de forma sistemática. A concentração de CO2 é medida por várias agências. Para os restantes, é necessário esforço da parte dos cientistas para recolherem os dados. Não há nenhuma agência, como as Nações Unidas, que os monitorize de forma sistemática. 

Essa agência pode ser a Casa Comum da Humanidade? Quais são as suas expectativas?

Acho que vamos poder monitorizar o que acontece na Terra, como um sistema. E espero que com isso consigamos obter compromissos dos governos para que trabalhem em conjunto pela estabilidade do sistema terrestre.

Mas a Casa também tem uma missão ética e moral. Até agora só olhámos para a Terra como uma coisa física – pescamos do mar, fazemos agricultura no solo, cortamos árvores –, não pensamos na parte intangível do sistema terrestre, que nos proporciona um sistema estável e favorável à vida.

Hoje temos a biosfera, o clima e a antroposfera. Se nos imaginarmos nesta moldura, seremos capazes de nos gerir como parte do sistema terrestre e como entidade capaz de o manter em equilíbrio. Devemos olhar para o sistema terrestre como um “sistema de suporte de vida”. Acho que se a Casa Comum da Humanidade conseguir passar esta ideia às pessoas será um grande sucesso.

Como avalia, até agora, os avanços do Acordo de Paris?
É cedo para fazer uma avaliação completa. Mas agora diria que estou desiludido. Não vejo nenhuma mudança significativa, à excepção, talvez, da China. Certamente não nos Estados Unidos. Nem na Alemanha – que é tradicionalmente um país activo nesta matéria –, onde têm problemas em parar as minas de carvão na antiga região leste. Acho que temos grandes desafios à frente. Em parte porque é um problema do sistema. As pessoas, até os governos querem fazer o que é certo, mas estão a combater um sistema económico assente no não-reconhecimento do intangível.

Apelando à sua experiência na Suécia e na Austrália, o que podem fazer os governos a nível local?
Uso um exemplo da Austrália. Em Camberra, cidade que, embora seja capital, terá menos de um meio milhão de habitantes, a administração local decidiu, em 2010, eliminar completamente o carbono do sistema energético até 2020. Eram apenas 10 anos para fazer a mudança e, na altura, estávamos nervosos porque as renováveis eram muito caras. Mas os preços começaram a descer. Agora temos cinco grandes parques solares ao longo da auto-estrada e parques eólicos. Claro que fazemos parte de uma rede nacional, mas eliminámos os combustíveis fósseis do consumo de energia dos habitantes de Camberra. E, não só fizemos isto, como temos o preço mais baixo de energia na Austrália.

Isto deu-nos confiança. E recentemente aprovámos uma nova lei para eliminar o resto do carbono da economia de Camberra – resíduos, transporte, infra-estruturas – até 2025 ou até mais cedo. E isto mantém-nos entre os intervalos do Acordo de Paris.

O passo mais difícil foi o primeiro. Houve grandes discussões políticas. As pessoas diziam que ia custar demasiado, que não ia funcionar, que iam perder os seus empregos. Na verdade, criámos postos de trabalho. Algumas empresas de energia renováveis mudaram as sedes para Camberra, começaram a formar técnicos. A nossa economia cresceu e levou o poder político a dizer: “Sim, vamos eliminar o resto do carbono da economia.”

Há uma tendência para se considerar que, sendo as alterações climáticas um fenómeno global, as acções locais terão pouco impacto. Como desconstrói esta ideia?
As alterações climáticas requerem acção colectiva. E é essa a beleza das energias renováveis: pode-se começar a nível local, até a nível individual. O que se passa na Austrália é que temos um governo que não faz nada, que continua a dar dinheiro à indústria dos combustíveis fósseis. Mas muitas cidades, inclusive bem mais pequenas que Camberra, fazem a parte delas. Então agora a Austrália tem a mais elevada taxa de energia solar per capita do mundo.

E é preciso que as pessoas se envolvam politicamente. Têm que votar em partidos que tomem acções para mitigar as alterações climáticas.

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