A fábrica de Venezuelas
O que significa a vitória de Bolsonaro? Em grande parte uma navegação num mar desconhecido.
Para a geração nascida nas décadas de 40 e 50, que viveu a ditadura militar brasileira no auge da juventude, e dez anos depois o desmantelar da URSS e a queda do muro de Berlim, Jair Bolsonaro é uma figura extremamente eloquente. Apesar da sua precocidade, ele só vivenciou essa época marginalmente (tinha 13 anos em 1968). Porém, para justificar os seus reflexos proto-fascistas, racistas, machistas e homofóbicos, ele agita continuamente o espectro do comunismo. E assim reaviva a ideologia que pretende combater.
Em 1964, o contexto internacional, a Guerra Fria, fornecia um quadro propício aos golpes de Estado. Foi o que aconteceu um pouco por toda a América Latina incluindo no Brasil, com a operação Condor, diretamente inspirada e sustentada pelos EUA. A Venezuela viveu décadas de extrema perturbação política, ao sabor das oscilações dos preços do petróleo. Hugo Chavez foi eleito em 1998. Em 2002, teria sido do interesse da direita brasileira refletir sobre essa tentativa de golpe cujo único efeito foi o de radicalizar o regime bolivariano. Há 20 anos que o regime sobrevive, ganhando eleições mais ou menos dúbias, com o apoio das forças armadas. E está no estado que sabemos.
No Brasil, Lula ganhou as primeiras eleições presidenciais em 2002, sendo reeleito em 2006. Em 2010, o PT, Partido dos Trabalhadores, o partido de Lula, elegeu para a Presidência Dilma Rousseff, uma das principais colaboradoras de Lula, que foi reeleita em 2014. Em 2018 Lula contava recandidatar-se (a Constituição de 1988 não previa a reeleição do Presidente, mas Fernando Henrique Cardoso promoveu uma revisão constitucional que alterou essa disposição – diz-se que mediante corrupção dos deputados – de modo a que pudesse recandidatar-se).
A direita brasileira decidiu quando da segunda eleição de Dilma reunir um conjunto de atores para evitar que a grande popularidade de Lula lhe garantisse a eleição para um terceiro mandato em 2018. Esses atores foram basicamente a grande mídia, sobretudo as organizações Globo, a justiça, armada com um instrumento importado dos EUA – a delação premiada, que praticamente obriga o acusado a provar a sua inocência em processos de cariz inquisitorial –, e o Congresso, dirigido por um político sem escrúpulos, Eduardo Cunha. Ele está preso no momento, e foi à base de corrupção dos seus colegas e de outros expedientes legais sem fundamento que conseguiu a destituição da Presidente. Em seguida, Lula foi condenado por corrupção num processo que levantou muitas dúvidas, quanto mais não seja pela sua rapidez e oportunidade, e pelo fato de praticamente só políticos do PT serem perseguidos, enquanto os políticos do PSDB, também claramente envolvidos em processos de corrupção, como José Serra e Aécio Neves, continuarem incólumes. Durante os dois anos que se passaram entre a destituição de Dilma e a prisão de Lula, a grande estrela da crise foi um juiz de Curitiba, Sérgio Moro, encarregado de julgar os casos de corrupção ligados à Petrobras, que eram muitos e graves, e que se celebrizou também pela sua atuação simultânea como juiz e procurador, e pelas suas ligações extraoficiais com o Departamento de Justiça americano, cujo subprocurador, em depoimento filmado, confessou ter colaborado na condenação de Lula.
Após esse golpe parlamentar e a prisão de Lula, estaria aberto o caminho para o regresso ao poder da direita do PSDB de Fernando Henrique Cardoso. Porém, como na Venezuela em 2002, os políticos desse partido se enganaram no timing. Com a eleição de Trump nos EUA o contexto havia mudado. O momento não era mais propício para a globalização liberal bem comportada. Com Trump querem-se portas mais abertas e ideias mais radicais. Desmoralizada a mídia, a justiça e o Congresso, ao candidato do PSDB o povo brasileiro preferiu um livre atirador de extrema-direita, sem programa, agitando apenas um discurso machista, racista, homofóbico e revanchista, pretendendo recuperar a ditadura militar até nos seus aspectos mais sinistros, como a tortura e os assassinatos. Ex-capitão com uma passagem controversa pelas Forças Armadas, Jair Bolsonaro dispõe do apoio dos “generais de pijama”, dos militares aposentados, e certamente de boa parte das Forças Armadas, que foram pouco a pouco colocando altos graduados em postos chaves das instituições civis. No mínimo para garantir a ordem constitucional, no máximo para se substituir a ela.
O candidato do PT, designado tardiamente no lugar de Lula – impedido de se candidatar apesar dos protestos de muitos democratas, intelectuais e políticos, brasileiros e de todo o mundo, e da Comissão de Direitos Humanos da ONU, pois não se haviam esgotados todos os seus recursos legais –, é um professor da Universidade de São Paulo, Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação, um homem ponderado, mas sem o carisma do seu mentor. Por outro lado, a destituição de Dilma, e a condenação de Lula e de alguns outros políticos do PT acabaram convencendo a população de que a corrupção era o grande problema do Brasil, e o PT o seu operador. Instituições como o Supremo Tribunal Federal perderam a credibilidade e a disputa se polarizou então entre a luta contra a corrupção e o PT e a defesa da democracia, e tudo indica que o vencedor será o gorilesco Bolsonaro.
O que significa a vitória de Bolsonaro? Em grande parte uma navegação num mar desconhecido. É claro que grande parte do mundo dos negócios já aderiu à sua política, apesar de certa ambiguidade nas suas intenções entre um neoliberalismo desabrido, e a defesa de algumas estatais, destinada a satisfazer a classe militar que aí encontra abrigo, e guarda algumas veleidades nacionalistas (a Embraer já foi comprada pela Boeing, discute-se o destino da Eletrobras, outras como a Fiocruz (saúde), da Embrapa (agricultura), estão cruzando os dedos. Os trabalhadores já começaram a ter seus direitos cerceados, e condições de trabalho deterioradas, sobretudo no campo, longe dos olhos do mundo, onde persistem condições próximas da escravatura. O desmatamento da Amazônia já foi prometido, e as reserva indígenas seriam extintas, assim como os antigos quilombos. Bolsonaro segue a linha trumpiana de recusa do aquecimento climático. É pouco provável que as margens dos bancos sejam aparadas, embora talvez algum banco público seja alienado, o que significa que para além das privatizações não se pode prever grande desenvolvimento económico, sobretudo por ausência de investimento nacional (é mais lucrativo ser rentista) e internacional (sobretudo se houver agitação social). As petrolíferas estrangeiras tomaram conta das reservas de petróleo, mas o mundo não precisa de mais petróleo no momento. É possível que o eixo do comércio externo passe a pender para o lado dos EUA – ao invés da China, hoje o maior parceiro do Brasil. É pouco provável que o desemprego caia, o que num país jovem como o Brasil é grave, e que se refletirá imediatamente na violência e segurança.
O governo que tomou posse após a destituição de Dilma aprovou uma medida inédita absurda e celerada, que impede o aumento das despesas sociais pelo período de 20 anos, que não deverá ser posto em causa por este governo, o que num país com as carências do Brasil é dramático. Isso significa cortes na Saúde (e eventual fim do SUS, Serviço Universal de Saúde), nos programas sociais como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Eletricidade para todos, bolsas de estudo, etc., que foram as grandes conquistas do PT, e lhe valem uma grande popularidade na região Nordeste, uma das mais pobres e populosas no país, mas também nos gigantescos, miseráveis e abandonados subúrbios das megalópoles brasileiras, em parte nas mãos de milícias e das igrejas evangélicas a que Bolsonaro é ligado. Isso significa igualmente privatização do ensino universitário (que é em grande parte federal, ao contrário dos outros graus, que dependem dos municípios e estados). E, sobretudo, a intromissão das igrejas evangélicas no conteúdo do ensino, como no caso do criacionismo... (que esperamos se limite a explorar a inocência infantil e não seja imposto nos cursos universitários...)
É de recear, no entanto que seja na área dos direitos humanos e políticos que a ação do governo mais se faça sentir, cerceando as liberdades, reprimindo mulheres, homossexuais, negros, índios. Nestes dois anos de crise política o assassinato de Marielle Franco ficou por elucidar. Vários indicadores sociais fundamentais, como os da mortalidade infantil e da fome, já pioraram. O Brasil se afunda nos últimos lugares das estatísticas sociais das organizações internacionais. O mesmo acontecendo com a desigualdade de renda, só comparável à das Honduras e Haiti, na América Latina.
Resistirá Bolsonaro a um quadro que só pode agravar ainda um dos mais trágicos problemas do Brasil, que é o da violência, da segurança pública? A sua intenção afirmada é de lidar com essa questão sem contemplações, ou seja, incentivar a polícia e as milícias a matar um número cada vez mais importante de jovens negros. O que é uma falsa solução num país que bate todos os recordes nessa área, contribuindo mais para o problema que para a solução.
Sem plano de emergência econômica à vista após dois anos de decadência de um modelo baseado na exportação de matérias primas, amplamente ultrapassado, prevendo políticas que apenas beneficiam o capital, e não oferecem qualquer espécie de incentivo ou motivação à população para além das conversas fiadas evangélicas e de ideias dignas dos tempos da guerra fria, parece pouco provável que Bolsonaro, que nunca exerceu nenhum cargo político ou administrativo, tenha inteligência e temperamento para se aguentar. Nessa altura é provável que as Forças Armadas se resolvam a tomar as coisas em mãos. Caso a espiral negativa na economia se aprofunde, estaremos então numa situação muito semelhante à da Venezuela, postos de parte os pruridos ideológicos.
Uma evolução nesse sentido não pode ser desejada. No entanto, não estava fora do domínio dos possíveis, quando a imprensa internacional e a maioria dos “brasilianistas” de festanças em Parati se deliciava a esmagar sob o selo da infâmia os políticos do PT, que com todos os problemas que lhes podem ser apontados – e não são poucos – trouxeram o Brasil para o palco da política internacional e conseguiram, sem subverter a ordem económica, e respeitando plenamente a Constituição, melhorar significativamente o bem-estar. E, finalmente, o que esses analistas obtiveram foi a troca de um temido mas inexistente populismo de esquerda por um populismo proto-fascista.
Esperemos que este nos surpreenda e continue levando o Brasil para a modernidade, ao invés de reavivar entre a população mais carente os sonhos do comunismo morto e enterrado com o fascismo de que Bolsonaro se reclama, comunismo que ele está incentivando a renascer. O Brasil é um país importante demais de vários pontos de vista, e nomeadamente no que respeita À saúde do planeta, para que possa ser confiado às mãos de um desequilibrado.
Pesquisador; editor de Brasil, sociedade em movimento, 404 págs., Paz e Terra/Record, São Paulo, 2015
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico