O que quer Matteo Salvini?
O que está em causa, para além da ameaça de uma nova crise do euro, é a desagregação do próprio projecto de integração europeia.
1. Nos últimos dias, envolvi-me em discussões apaixonadas sobre o que pode vir a acontecer a Itália e, consequentemente, à União Europeia com o braço-de-ferro entre a Comissão e o governo de Roma em torno da proposta de orçamento enviada para Bruxelas. O orçamento italiano não cumpre as regras do Pacto de Estabilidade ou, sequer, o compromisso assumido pelo governo anterior quanto ao défice e à dívida. O desvio é suficientemente grande para que a Comissão tenha tomado uma decisão inédita: devolver a proposta a Roma e pedir outra. O governo Salvini-Di Maio anunciou que não mudará uma vírgula, lançando-se numa série de tiradas de efeito fácil, apelando ao patriotismo contra a “ingerência externa” de Bruxelas. “Este orçamento é o primeiro que foi feito em Roma, não em Bruxelas.” “A Comissão não atenta contra um governo, mas contra um povo.” Di Maio foi ao ponto de citar Roosevelt: “Só temos de ter medo do próprio medo.”
Para além da demagogia fácil, o argumento principal do governo italiano é a necessidade de estimular a economia, estagnada há quase duas décadas, através de uma redução dos impostos (promessa da Liga) e de um aumento das prestações sociais (promessa do Cinco Estrelas). Os dois partidos, ainda que coligados, professam credos muito diferentes e competem entre si já com vista às próximas eleições. O Cinco Estrelas é um partido anti-sistema, professando uma espécie de populismo de esquerda e dispensando o próprio Parlamento a favor de uma democracia directa. A Liga nasceu da Liga Norte de Umberto Bossi, um partido regional, separatista e de extrema-direita, cuja bandeira inicial era a independência da mítica Padania, a região Norte do país, muito mais rica e desenvolvida que o Mezzogiorno, a parte da bota que fica abaixo de Roma. Ambos, no entanto, fizeram campanha contra a União Europeia e contra o euro.
O défice italiano nem é o mais alto dos países da zona euro – o francês é superior, mas está em sentido descendente. O problema é que a Itália tem a segunda maior dívida pública da União Europeia, à volta de 130% do PIB, e embora haja o argumento de que está, em boa parte, em mãos italianas (nomeadamente do Banco Central), a verdade é que, enquanto houver défice, ela aumenta na quantidade necessária para financiá-lo. É, para Bruxelas, uma bomba-relógio que a zona euro não pode deixar explodir.
2. No cerne do debate estão as reais intenções de Matteo Salvini, o líder da Liga, que se transformou rapidamente na figura mais influente do governo. Alguns defendem que, apesar da sua retórica radical, não tenciona partir a corda, porque isso teria consequências económicas desastrosas para os italianos. Outros consideram que o objectivo último do líder da Liga, ainda que por enquanto inconfessável, é tirar a Itália do euro (e, consequentemente, da União Europeia). Em favor da primeira interpretação (que é, até ver, a minha) estão as pesadas consequências económicas e sociais que a radicalização total teria para a Itália, mas também o peso de uma opinião pública que sempre foi bastante favorável ao euro e à União Europeia. O mais recente Eurobarómetro confirma isso mesmo.
Outro argumento defendido por aqueles que acreditam que Roma não quer romper está no “juízo” que os mercados se encarregarão de meter na cabeça de Salvini, elevando as taxas de juro da dívida, dificultando o acesso dos bancos ao mercado, criando a perspectiva de uma crise económica que os italianos, como bons europeus que são e, portanto, pouco dados ao sacrifício, rapidamente rejeitariam. Os gregos também “espernearam” perante as imposições de Bruxelas, mas depois renderam-se à evidência de que o melhor era mesmo pagar o preço para ficar dentro. Até agora, a penalização dos mercados financeiros ainda não se fez sentir de forma demasiado evidente – os juros da dívida têm subido e descido quase numa base diária, mantendo-se em redor dos 3,5% a dez anos. Na sexta-feira, o governo italiano anunciou que tomaria “contramedidas” para reagir a qualquer sinal de “especulação”. Ainda é cedo para se perceber o que pode acontecer nesta frente. Mas, com todos os seus problemas, a economia italiana tem “argumentos” que a grega ou a portuguesa não têm.
3. O problema de Itália é, acima de tudo, político e vai ter de ser nessa base que, mais tarde ou mais cedo, os governos europeus vão ter de encará-lo. Não vale a pena a Berlim dizer que não tem nada a ver com o assunto, que é um problema da Comissão, porque, por mais atendíveis que sejam os seus argumentos, não vão poder manter-se por muito tempo. Merkel não quer alimentar o discurso antialemão de Salvini e quer, ela própria, afastar-se de mais um problema, quando já enfrenta tantos em casa. Hoje, as eleições no Land de Hesse (Frankfurt) podem transformar-se em mais um pesadelo para a chanceler. Mas o que está em causa, para além da ameaça de uma nova crise do euro, é a desagregação do próprio projecto de integração europeia, cujos sinais são visíveis com o "Brexit", com a escolha dos italianos, com a infracção polaca, húngara ou romena aos princípios fundamentais sobre os quais a Europa foi construída, que são o seu mais poderoso cimento e sem os quais dificilmente sobreviverá. É, também, a crise das suas democracias, alimentada pela ideia de que a partilha de soberania não é compatível com o funcionamento da democracia nacional, mesmo quando ela é aceite democraticamente e sufragada uma e outra vez em cada um dos Estados-membros.
Alguns académicos italianos falam de que os eleitores do seu país perderam a crença na democracia, cansados dos partidos tradicionais, graças a uma elite política fechada sobre si própria e aos seus esquemas de perpetuação do poder e dos privilégios, incapaz de reformar a Itália para adaptá-la às novas realidades económicas e sociais do século XXI. Fracassou a solução tecnocrática de Mario Monti. Fracassou o impulso reformista do jovem e ambicioso Matteo Renzi, líder do Partido Democrata. Até Berlusconi, enredado nos seus casos de corrupção e mau comportamento, já não merece a simpatia dos italianos, que nem se podem queixar muito do peso que têm à frente das principais instituições da União. Das seis principais, três são dirigidas por italianos: Mario Draghi lidera o BCE e deve-se-lhe, em grande medida, a salvação do euro; Antonio Tajani (PPE) preside ao Parlamento Europeu; Federica Mogherini (PSE) tem dado muito boa conta do cargo de Alta Representante para a Política Externa e de Segurança da União. Mas é esta dimensão política de descrença na democracia que dá ao problema italiano uma dimensão de imprevisibilidade sobre o futuro da Europa, ainda a lamber as feridas da última crise. Seria igualmente esta descrença que daria margem de manobra a Salvini para alimentar uma estratégia de mais longo prazo, destinada a romper com o euro e com a União – o seu verdadeiro objectivo.
4. Acresce que a erosão democrática e a ascensão do populismo não é um fenómeno apenas europeu, mas sim uma tendência que se manifesta à escala mundial, com o seu efeito de boomerang sobre a própria Europa. Donald Trump não se cansa de incentivar Salvini: já disse que ele conseguirá “uma economia forte” e não perde a oportunidade de insistir no apoio à sua política anti-imigração, com a qual diz concordar a “100%”. Vladimir Putin recebe-o com todo o “carinho” em Moscovo, porque Roma se opõe às sanções contra a Rússia, decretadas pela União Europeia na sequência da crise ucraniana. Salvini já manifestou publicamente a sua simpatia por Bolsonaro, que hoje à noite, provavelmente, já será o novo Presidente do Brasil. Só há uma forma de combater esta tendência que os populistas e os nacionalistas aproveitam a seu favor: falando verdade aos europeus e voltando a mobilizá-los para a ideia de uma Europa unida política e economicamente em torno dos seus interesses comuns, para enfrentar um mundo que lhe é cada vez mais adverso. Não faltam os argumentos. Mas isso exige coragem aos líderes e às forças políticas pró-europeias e, sobretudo, a capacidade de não pensar apenas no dia seguinte.