A emergência de partidos e movimentos de extrema-direita em toda a Europa e a iminência da eleição de Bolsonaro para a presidência do Brasil – assim como outros signos indiscretos do ambiente político que suscitam o uso das metáforas médicas dos sintomas e das memórias traumáticas – fizeram com que se difundisse a tese do regresso aos anos de 1930. A referência ao fascismo histórico, aos fascismos clássicos europeus que irromperam entre as duas guerras mundiais, é certamente tentadora porque há, aqui e ali, sobrevivências da matriz do velho fascismo, em relação ao qual a nossa consciência histórica nos coloca em estado de alerta. Mas há uma simplificação e um esquema interpretativo demasiado rígido nesta análise que situa as novas direitas extremas – de resto muito heterogéneas – numa linha de continuidade ideológica em relação aos anos 30 do século passado. Esta grelha analítica, levando a um “diagnóstico” errado, pode revelar-se um obstáculo para a compreensão do fenómeno e provocar formas equivocadas de lidar com ele. É o que pensam, entre outros, dois reconhecidos historiadores do nazismo e da história europeia do século XX: o inglês Ian Kershaw e o italiano Enzo Traverso. É deste último um livro sobre “os novos rostos do fascismo”, onde introduz o conceito de “pós-fascismo” como analisador deste tipo de movimentos (muitos deles ainda em formação) que, embora apelando em alguns aspectos a uma matriz fascista, são no essencial muito diferentes.
Desde logo, observa Traverso, o fascismo clássico designa um conjunto de organizações de massa dirigidas por um partido e impulsionadas por um chefe carismático. O fascismo fomentava a guerra e a reconstituição de impérios e reclamava a condição de “revolucionário”. Queria construir uma nova civilização. Era, portanto, detentor de valores fortes, enquanto esta nova extrema-direita se caracteriza por ser politicamente reaccionária e socialmente regressiva, obcecada, diz Traverso, com uma dupla tarefa: restabelecer as “identidades nacionais” ameaçadas (a xenofobia é a sua marca mais imponente e com mais poder de mobilização) e preencher o vazio deixado pela política, quando esta é reduzida ao “impolítico”. Traverso utiliza esta palavra para designar uma relação desencantada com a política e a pura “governança”. Mas a palavra tem outras ressonâncias profundas, reenvia-nos para as Considerações de um Impolítico (1918) que Thomas Mann escreveu durante a Primeira Guerra Mundial. Thomas Mann movia-se então no território ideológico da “revolução conservadora”, que apelava à “mobilização total”, à disciplina e ao sacrifício da guerra dominante. Ora, o fascismo dos anos 30 estava ligado por essência à ideia de mobilização total e à figura do Trabalhador, uma Gestalt histórico-espiritual que Ernst Jünger representou num livro de 1932 que se intitula precisamente O Trabalhador. Não nos iludamos com este título: o Trabalhador do ensaio de Jünger é completamente subtraído à linguagem do marxismo para falar pura e simplesmente a língua da mobilização total que inspirou os fascismos. Fácil é então perceber que estamos hoje muito afastados das condições do fascismo dos anos 30. A categoria de “pós-fascismo” formulada por Enzo Traverso implica também que a situação actual é a de pós-mobilização total.
A matriz ideológica desta extrema-direita moderna é antes o princípio identitário. O racismo vem a par do sexismo, como se viu em França, com as manifestações contra o casamento homossexual, como se pode ver nos casos de violência homófoba que os jornais italianos noticiam diariamente, como se vê no que está a acontecer no Brasil. As direitas extremas actuais revelam uma fixação identitária sobre a sexualidade como “dado natural”. Lutar contra a democracia sexual segue o mesmo modelo da luta contra a democracia racial. E a ideia de um complot e de um inimigo maléfico surge com uma grande força mobilizadora. Já não se trata, agora da conspiração judaica mundial, dos “Protocolos dos sábios de Sião”, mas das categorias sexuais que são vistas como ameaças à “natural” ordem familiar e social.