O plano do PSD para a Justiça é um susto
Este plano coloca Portugal ao lado da Hungria e da Polónia na mesma rota de colisão com os princípios da UE.
Depois de tanto aparato e meses de suspense, as 50 páginas do plano do PSD para a Justiça, bem espremidas, podem ter o sumo de uma amêndoa amarga: pouco e venenoso. Tirando os lugares-comuns de sempre e uma ou outra pista interessante, há lá ideias que parecem remeter para os modelos populistas de domínio do poder judicial da Hungria e da Polónia.
Prevê-se aumentar o número de membros políticos nos conselhos superiores das magistraturas e colocar os juízes e procuradores em clara minoria. No mesmo sentido dessa modificação na correlação de forças que assegura a independência e separação de poderes, prevê-se também reforçar a capacidade de articulação entre a Assembleia da República e os membros políticos por si designados. A jusante, depois de robustecido o controlo político no topo, admite-se que os conselhos possam intervir na actividade jurisdicional, por exemplo, orientando no modo de elaboração das sentenças e avaliando a substância das decisões e actos processuais.
Independentemente da intenção, a soma daquelas medidas teria um efeito óbvio: mais controlo político do Ministério Público e dos tribunais. Porquê? Razões de eficiência não existem. Só nos últimos cinco anos a pendência nos tribunais baixou mais de 41%. Então, num momento em que a Justiça revela capacidade de bater a mais portas, esta intenção de fortalecer o controlo político sobre as magistraturas tem de ser melhor explicada. Quanto mais não fosse porque choca de frente com os princípios europeus e é perigosa para Portugal.
A necessidade de haver uma maioria de juízes nos seus órgãos de governo autónomo, como forma de assegurar a independência judicial, não é uma esquisitice. É um princípio defendido por instituições de que Portugal faz parte. A Recomendação (2010)12, do Comité de Ministros dos Estados-membros do Conselho da Europa, estabelece que “não menos de metade dos membros desses conselhos (judiciários) deverão ser juízes escolhidos pelos seus pares, de todas as instâncias judiciais e com respeito pelo pluralismo dentro do judiciário”. Esta regra foi reafirmada recentemente na Decisão do Conselho Europeu, de 20/12/2017, a propósito da situação da Polónia, no Relatório do GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção), do Conselho da Europa, de 6/3/2018, e no Relatório do Secretário Geral do Conselho da Europa, de 18/5/2018, State of Democracy, Human Rights and Rule of Law.
Ainda há dias, o Tribunal de Justiça da União Europeia, a pedido do Conselho Europeu, emitiu uma ordem para suspender a reforma judicial em curso na Polónia, depois de ter sido activado, pela primeira vez, o procedimento do artigo 7.º do Tratado Europeu por ameaça ao Estado de Direito, que pode levar à sanção de suspensão do direito de voto daquele país. Idêntico procedimento foi aberto contra a Hungria, por decisão do Parlamento Europeu, de 12/9/2018. Estranhamente, embora ainda num grau menor, este plano do PSD colocaria Portugal ao lado da Hungria e da Polónia, na mesma rota de colisão frontal com os princípios da União Europeia.
Mas há ainda outro ponto no documento do PSD que revela toda uma concepção desfocada do que deve ser o equilíbrio dos poderes político e judicial numa democracia amadurecida. Pretende-se que o Tribunal de Contas passe a ser um órgão de cooperação para uma melhor governação das finanças públicas e não tanto um órgão fiscalizador e sancionador. Esta medida é totalmente errada. O Tribunal de Contas é o último travão que pode impedir a repetição do despesismo público descontrolado, e em muitos casos criminoso, que conduziu o nosso país ao lastimoso estado que todos conhecemos. O sistema de autorização de despesas com visto prévio e de controlo das contas não pode ser visto como um factor de bloqueio. É um factor de legalidade e moralidade. Com um Tribunal de Contas mais “amigo”, que se limitasse a carimbar autorizações, os governos podiam gastar o nosso dinheiro à tripa forra para engordar as empresas dos amigos com obras inúteis e no fim, quando viesse a conta, pagávamos nós todos, com mais desgraça e sacrifício.
Este plano não está à altura da tradição europeísta e institucionalista da social democracia. Estaria, isso sim, um outro que aprofundasse a independência dos tribunais e a autonomia do Ministério Público e lhes atribuísse mais meios para fazerem o que é preciso.