Amigo, familiar, militante: o laxismo democrático de Costa

Se cruzarmos o padrão dos laços de amizade com o padrão da convergência familiar, a composição do actual Governo deixa muito a desejar sob o ponto de vista da ética republicana.

1. De acordo com os critérios da independência dos reguladores, da transparência e ética republicana, a nomeação de um deputado do PS, de seu nome Carlos Pereira, para vogal da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos é absolutamente inadmissível. No entanto, tirando dois ou três comentadores, a suavidade e a tolerância da comunicação social parecem generalizadas. Por entre jornalistas, ninguém verbera, ninguém condena, ninguém se indigna. Pois bem, tão ou mais nociva do que esta vergonhosa nomeação é a frouxidão e a indiferença com que o panorama mediático português olha para ela. Se ela fosse um caso isolado, mereceria reprovação e reparação; nada mais. Seria quiçá uma sobrevivência dos maus hábitos do “cesarismo açoreano”. Mas não se cura de um caso apartado; trata-se outrossim de uma prática inscrita num espírito de ocupação molecular dos lugares públicos, propiciado por um atrevimento incomum, só possível pela sensação de “à vontade político-institucional”, que resulta da parcimónia do escrutínio mediático.

2. Para perceber este espírito de “à vontade” e a deferência com que é encarado, olhemos com atenção para a última remodelação governamental e para alguns dos comentários produzidos. No espaço mediático, multiplicaram-se as referências elogiosas à circunstância de Costa ter chamado para o Governo personalidades muito próximas do seu círculo privado, algumas delas reputadas mesmo como “amigos” pessoais. Isto – escreveu-se e disse-se por aí – seria um reforço do núcleo duro do Governo, da sua coesão e robustez, dando-lhe músculo político para disputar o ciclo eleitoral. Curiosamente, ninguém se lembrou de registar a leitura contrária: normalmente só chama gente muito próxima quem já não está em condições de recrutar num âmbito mais vasto. Mas o ponto não era nem é este. Não haverá demasiada leviandade e ligeireza – que aqui se poderia denominar uma e outra vez por “à vontade político-institucional” – na designação sistemática de amigos para cargos públicos? Não havia já antecedentes de pessoas do círculo íntimo de Costa terem sido encarregados de invulgares funções informais (o célebre caso Lacerda Machado)? Que república salutar tem um Governo em que quatro ou cinco ministros são amigos “lá de casa”? Será que num país de dez milhões de pessoas a capacidade de escolha do chefe do executivo tem de se circunscrever ao circuito de seus amigos? Ponhamos as coisas no seu lugar: não está em causa criticar ou censurar o Primeiro-Ministro por escolher para o seu governo ou para um cargo determinado alguém com quem mantém laços de amizade. Mas é algo que deve fazer com um enorme sentido de exigência e de prudência, atendendo particularmente às qualificações e qualidades que justificam essa escolha. E que, em caso algum, pela repetição de casos, deve converter-se num padrão ou numa regularidade. Deve, para sanidade do sistema político e da república, configurar-se como uma excepção.

3. A questão tem toda a pertinência – e até uma preocupante continuidade –, se passarmos para o glosado tema das relações familiares dentro do Governo. Também aqui todo o escrúpulo e todo o cuidado é pouco. Não é normal que um ministro e uma ministra sejam casados. Pode acontecer, haverá razões que o podem justificar, mas não é normal. E menos normal se torna se, no mesmo Governo, coincidem pai e filha. Tudo se complica se entretanto há vários membros do Governo que são cônjuges e filhos de ex-ministros ou de figuras gradas do PS e se outros são irmãos e primos de uns tantos mais. Que haja uma relação de sangue ou afinidade, bem explicada pelo currículo e pela história de cada qual, não pode nem deve ser visto como uma anomalia democrática. Que haja duas, ainda vá que não vá. Mas que haja um governo em que convergem tantas situações de laços familiares de todo o tipo é algo que contraria o princípio democrático, que vulnera o princípio republicano e que, diga-se o que disser, não pode ser nem são nem bom. Sinceramente, é incompreensível que o primeiro-ministro – o único que tem a visão de conjunto aquando da formação do executivo – não tenha sido nem seja sensível a esta confluência intrincada de relações familiares. Custa também a perceber, por outro lado, que as pessoas com estes nexos familiares não se coíbam de aceitar certas responsabilidades. Mais uma vez, não está em causa uma situação singular, de acordo com o sempre invocado princípio de que ninguém deve ser prejudicado ou afectado pela sua história familiar. Está em causa o resultado final que se atinge quando o “à vontade político-institucional” leva a que mais de uma dezena de membros do Governo tenha relações familiares relevantes para este efeito. Se cruzarmos o padrão dos laços de amizade com o padrão da convergência familiar, a composição do actual Governo deixa muito a desejar sob o ponto de vista da ética republicana, dos mecanismos democráticos, da transparência e até do potencial de incompatibilidades. Na verdade, este tipo de formação, com este desenho interno de ligações e afectações, não é próprio de uma democracia, é antes típico de uma aristocracia (dando a este conceito, ainda assim, a acepção benigna que lhe dá Aristóteles). De algum modo, a polémica que anda à volta da “salamização” progressiva do Ministério da Economia ainda é tributária desta pecha do “à vontade político-institucional”, em que uma função é talhada à medida conveniente das limitações do seu titular. Quando a sociedade civil, o establishment mediático e até o poder político – este, por um pudor porventura desculpável – se conformam com esta deriva, há um relaxe, um relaxe sério, da democracia. Entramos, pois, numa era de laxismo democrático. Pouco sã, cheia de riscos, eivada de perigos.

NÃO. Orçamento 2019. Sem equidade entre público e privado ou entre pobres e ricos, sem impulso ao crescimento, sem alívio fiscal, sem prudência macroeconómica, não passa de um menu eleitoral.

NÃO. Jair Bolsonaro. Por obra da classe política, o Brasil desceu ao grau zero das alternativas. A insegurança e a corrupção são o móbil dos eleitores. Mas diante da grave ameaça Bolsonaro, não pode hesitar-se.

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