António Costa e o fantasma de Tancos
Por muito que custe a Costa admiti-lo, o caso remete para óbvias responsabilidades políticas, não obstante a teia intrincada de cumplicidades corporativas militares que o enredam.
António Costa decidiu aproveitar a coincidência entre a apresentação do Orçamento do Estado (OE) para 2019 e a demissão do ministro da Defesa por causa de Tancos para encenar um daqueles golpes de génio político em que é mestre consumado, promovendo uma das maiores remodelações governamentais de que há memória recente. Coincidência significativa: ao contrário do Presidente Macron, que levou quase duas semanas para remodelar o Governo francês, na sequência da demissão do ministro do Interior, Costa apanhou toda a gente de surpresa pela rapidez dos seus reflexos e o seu sentido de oportunidade, afastando alguns pesos mortos ou que se arrastavam penosamente na gestão das respectivas pastas e introduzindo um sopro de frescura na sua equipa (mas aproveitando também para promover alguns fieis de longa data como Siza Vieira, atingido de novo pela suspeita das incompatibilidades).
Conjugando este efeito de surpresa com um Orçamento desenhado à medida para agradar a Bruxelas e aos parceiros da "geringonça" – apesar dos incorrigíveis e já crónicos sofismas negociais do ministro Vieira da Silva, aqui no processo das reformas antecipadas –, o primeiro-ministro parecia ter capitalizado grande parte dos trunfos políticos no percurso pré-eleitoral, senão a caminho de uma maioria absoluta mas cada vez mais perto dela (e, pelo menos, conseguindo aprisionar o PCP e o BE numa armadilha favorável ao Governo). Sinal revelador foi, aliás, a gritaria da oposição denunciando o OE como "eleitoralista".
Só que, em política, não há golpes de génio que resistam aos percalços mais inesperados e traiçoeiros, como fantasmas pairando sobre os trajectos aparentemente mais auspiciosos. E, neste caso, quis o destino que fosse uma história tão improvável, racionalmente inexplicável e até grosseiramente ridícula como Tancos a ensombrar a boa estrela de António Costa, chegando já a especular-se que o primeiro-ministro estaria a par de alguns segredos inconfessáveis da novela e que, para não dar parte de fraco ou expor-se ao gáudio da populaça, teria simulado não ser nada com ele (ao abrigo da sua famosa formulação "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política"). Ora, por muito que custe a Costa admiti-lo, o caso remete para óbvias responsabilidades políticas, não obstante a teia intrincada de cumplicidades corporativas militares que o enredam. E não se compreende de todo como é que Costa – estando ele em condições de aceder oportunamente a informações classificadas e "secretas" sobre o dossier – deixou passar tanto tempo sem exigir explicações (e responsabilidades) junto do ministro da tutela até às granadas de Tancos lhe terem literalmente (e politicamente) explodido nas mãos. É isso, aliás, que a oposição, siderada pelo golpe de génio da remodelação e do OE, se prepara para lhe cobrar com juros acrescidos.
O problema maior com António Costa reside no ensimesmamento em que se compraz, no excesso de confiança que deposita na sua inoxidável habilidade política e nas supostamente inexpugnáveis muralhas defensivas erguidas à sua volta. Talvez não fosse inoportuno aprender com aquilo que aconteceu a Macron, ultrapassado pelos acontecimentos e em queda livre de popularidade depois de um ano em que confiou excessivamente na sua boa estrela. Como se viu, Costa não é invulnerável – e pelas piores (ou mais insustentáveis e ridículas) razões, expondo a essa vulnerabilidade o próprio Presidente da República que agora se apressa a pedir, com patente exasperação, explicações e responsabilidades políticas num caso que se quis esvaziar delas, remetendo-as para a esfera militar, como se as Forças Armadas não fossem um pilar fundamental da segurança nacional – e que por isso não suportam a exposição ao absurdo e ao ridículo.