Boss AC: "Uma fotografia do meu presente"
Pioneiro do hip-hop em Portugal na alvorada dos anos 1990, cinco álbuns lançados ao longo dos tempos e alguns dos êxitos mais sonantes da música feita em Portugal das últimas décadas. Eis Ângelo Firmino, Boss AC, 42 anos, que se prepara para lançar o sexto álbum. A Vida Continua é editado a 26 de Outubro.
Numa altura em que tanto se fala da saúde comercial do hip-hop, o regresso de Boss AC é encarado com expectativa. Afinal, ao longo dos anos, é talvez um dos exemplos mais palpáveis em Portugal de alguém que nunca perdeu o contacto com o sucesso, sem que tenha posto em causa a sua credibilidade artística. No novo disco conta com colaborações (Matay, Supa Squad, Ella Nor, Black Company, DJ Ride, DJ Bernas ou Ferro Gaita), mas é um álbum muito seu, na forma como foi sendo composto, gravado ou escrito, quase em isolamento, em estúdio.
É um disco, do ponto de vista sonoro, diverso, congregando motivos rítmicos mais clássicos (O verdadeiro ou As coisas são como são), mas não recusando abordagens mais contemporâneas (Diabo na terra ou Portas e janelas) e outras indefiníveis, como a magnífica Si propi, algures entre o funaná e o trap. O que não falta são também baladas mais próximas dos territórios R&B – Dá-me atenção ou Por favor (Diz-me) – ou palpitações afro-lusas cruzadas com dancehall (Catchupa sab). A revestir tudo, o tempo. A vida. E a morte. Do DJ Bernas, seu colaborador, no emocional Bernas, com sample de Paulo de Carvalho, ou na reflexão existencial de A vida (ela continua). E no entanto é um registo de alguém que continua consciente do seu espaço e que, a cada passo, vai sabendo renascer.
É um álbum muito pessoal. Não só do ponto de vista da criação musical, mas também na componente lírica. É talvez o disco onde acaba por ser expor mais. Concorda com isto?
É provável, sim, embora, com excepção do último álbum – AC Para Os amigos (2012) –, parece-me que poderia dizer isso de todos. Sempre tive dificuldade em expor-me, seja em entrevistas ou qualquer outro meio, mas na música acontece o oposto. É quase uma terapia. É difícil perceber porque é que as coisas me têm corrido bem, mas parte desse sucesso advém disso: do efeito de identificação que se gera entre as pessoas e a minha música e isso só é possível sendo sincero. São coisas do quotidiano com as quais qualquer um se pode relacionar. Mas é verdade que este álbum é muito pessoal, seja na escrita, na composição ou na gravação. É quase uma fotografia do meu presente. Reflecte uma altura de muitas mudanças, seja familiares ou a perda de entes queridos. Eventualmente com excepção do Por favor (diz-me) e o Catchupa sab, diria que são todas canções autobiográficas. Portanto, sim, é talvez o meu disco mais pessoal.
A passagem do tempo, da dimensão individual à colectiva, está presente. Há aliás uma canção, O verdadeiro, que constituiu uma digressão à volta do hip-hop em Portugal, o que acaba por se confundir com a sua vida. Um dos pormenores que aborda é importância da Ilha Terceira, nos Açores, nessa narrativa.
Sim, foi aí que tudo começou. Os Açores entram nessa história porque um dos meus tios mais velhos, com o qual tinha uma relação próxima, fez tropa na base americana das Lajes. Convivia com os americanos que lhe davam a ouvir as novidades do outro lado do Atlântico, na altura, em cassetes. Acabaram por chegar até mim, quando tinha entre 10 a 12 anos, e comecei a ouvir aquilo de trás para a frente mesmo sem ter noção do que era. Mais tarde é que percebi que eram nomes como Grandmaster Flash ou Sugarhill Gang, os pioneiros. E foi aí o princípio de tudo. Adorava aquilo.
Em primeiro lugar comecei a imitar, cantando por cima. Depois comecei a fazer as minhas letras, as coisas foram evoluindo, e às tantas comecei a cantar em português apesar de não me soar bem. Não tinha referências, apesar de já haver coisas a acontecer nessa altura em Portugal, na Margem Sul, com General D e outros, mas não nos conhecíamos. No início dos anos 90 foi aí que as bandas que iriam entrar na compilação Rapública (1994) se começaram a conhecer. Era tudo malta que gravitava à volta do Bairro Alto, do Targus ou dos Três Pastorinhos, e aí começámos a assumir o português. E nisso o sucesso do primeiro álbum do brasileiro Gabriel, o Pensador foi um incentivo. Depois saiu Rapública, a canção Nadar dos Black Company tornou-se num sucesso, e o resto é história.
Apesar de haver mais gente dessa geração que se mantém no activo, de Melo D a D-Mars (Rocky Marsiano) passando por Guto (Black Company) e pelo caso da reaparição de General D, foi você que acabou por ter um percurso artístico com mais visibilidade. Alguma explicação?
Não há explicação. É a persistência. Quando parto para um álbum penso sempre em termos de conceito. Tive muito tempo para pensar neste disco porque há seis anos que não lançava nada – apesar de nunca ter parado. E ao longo desse processo o conceito de tempo esteve sempre presente. De tal forma que um dos títulos que equacionei para este disco era precisamente o tempo. Entre outras coisas porque também me questionei sobre o meu papel nisto tudo. As coisas mudam depressa e interroguei-me se ainda me sentia relevante. Estou nisto desde os 16 anos. Vou a caminho dos 43. E tenho que ser sincero: não posso ter o mesmo discurso de um rapper de 18 anos. Sou pai de família e tenho outras preocupações. Mas, musicalmente, tenho o meu espaço. Fiz este álbum a partir disso: do que fui, do que sou e da expectativa do que serei. E em termos musicais isso é perceptível. O verdadeiro está muito ligado ao início da minha carreira, e também é por isso que tem a participação dos Black Company, naquele que foi o único tema escrito em estúdio. Depois existem outras músicas que apontam para outros territórios.
Quando essa geração aparece, existe ali uma forte afirmação identitária através da música. Algo nunca visto em Portugal daquela forma. Como é evidente nem todos conseguiram prosseguir uma carreira musical, até porque a realidade comercial ou industrial no país é exígua, mas fica a ideia que todos se integraram bem socialmente.
Sim, de acordo. Essa integração aconteceu. Do ponto de vista artístico alguns não terão conseguido ir mais longe do que outros, mas é a vida. Neste intervalo de tempo o que aconteceu foi isso: a vida, nas suas mais diversas dimensões. As pessoas fizeram as suas escolhas, formaram famílias e mudaram de actividade ou não. Mas com quem tenho ainda contacto mantém uma ligação emocional com a música. Pode não ser a sua actividade principal, mas haverá de estar lá sempre. Às vezes a dificuldade é acompanhar os tempos. É entender as mudanças. Às vezes não se resiste àquela coisa do “no nosso tempo é que era.” E não pode ser, na minha visão, até porque isso era o que diziam quando quisemos ocupar o nosso espaço. As coisas vão mudando. Olhe-se para hoje. Musicalmente o hip-hop está com uma saúde que nunca teve. Hoje oiço as rádios generalistas e já quase não se ouve rock.
É verdade que no universo globalizado de hoje a cultura hip-hop se tornou dominante nos mercados mais simbólicos, mas não é de hoje. Foi um processo. Aliás, no caso de Portugal o concerto do 50 Cent e de Boss AC em 2005, no Pavilhão Atlântico, naquela que foi a primeira vez que uma celebridade do rap americano aqui actuou, já confirmava essa transversalidade: gente de todas as idades e camadas sociais e assistir. Foi marcante. Quem esteve lá percebeu que algo mudara para sempre.
Totalmente de acordo. Essa ascensão foi um processo e concordo que, no caso de Portugal, esse concerto foi marcante. E sim, com aquela dimensão, em nome próprio, era a primeira vez de uma celebridade do rap em Portugal. Apesar de, no meu caso pessoal, até ter saído de lá com a sensação, sem falsas modéstias, de ter feito melhor trabalho que 50 Cent... [risos]. É verdade que esse predomínio não é novidade mas tem sido ascendente. E isso vê-se pelas rádios mais generalistas que hoje passam muito hip-hop e derivados, estando o rock menos presente. Só para dar um exemplo: a canção Princesa (Beija-me outra vez) não passava na rádio nessa altura. O que furava eram os Da Weasel, mas numa linha de cruzamento de linguagens. Nesse sentido, sem dúvida, que os tempos mudaram muito.
Nos primórdios havia a necessidade de conotar a música com a afirmação identitária. Agora tenta-se afirmar a superioridade comercial ou artística. Talvez acabe por ser inevitável, mas a reafirmação contínua da relevância colectiva do hip-hop, pode ter o efeito perverso de contribuir para a omissão dos percursos artísticos individualizados.
De acordo. O meu último álbum falava disso. Era um registo mais abrangente do que os outros e construído no modelo de banda. Ou seja, olharem para mim como mero rapper, e não como músico, principalmente naquele contexto, era redutor. Sou mais do que isso. Até porque produzo, escrevo e faço outras coisas, nem todas para mim, com abordagens que vão do fado à pop. Sempre fui um melómano ecléctico. Gosto é de música, no sentido mais lato do termo. Por isso quando digo que Princesa, Baza, baza ou Sexta-feira foram grandes êxitos de hip-hop, na verdade foram grandes êxitos da música portuguesa. A abrangência foi essa. Essa é a realidade. Ponto.
Não é fácil fazer carreira da música aqui. Há uns anos, numa entrevista, dizia que é fundamental perceber o terreno que se pisa, não para ceder aos imperativos do mercado, mas para se situar e adaptar aos diferentes contextos, sem nunca perder de vista a sua identidade.
Nunca tive pudor em falar disso. Se formos ouvir todos os meus discos percebe-se que existem uma série de referências constantes. No primeiro álbum o R&B está lá. O mesmo acontece com as influências cabo-verdianas, com a participação da minha mãe [Ana Firmino] e de Tito Paris. Essas vertentes ainda estão lá hoje. Houve uma altura em que esse eclectismo foi confundido com querer agradar a toda a gente. Nunca foi o caso. Outro exemplo: quando fiz Princesa, um dos meus maiores sucessos na vertente balada R&B, a editora onde estava – a Valentim de Carvalho – não queria que a canção entrasse no álbum. Achava que aquilo não era Boss AC. Eu dizia que estavam errados. Quando olho para trás revejo-me em tudo o que fiz. Tenho-me mantido fiel ao que acho que devo fazer. Apesar da indústria e do país serem pequenos há muita pressão, das editoras ou dos fãs, e aumenta quando se tem sucesso. O difícil não é obtê-lo, mas mantê-lo. Por isso, quando venho de um sucesso massivo e abrangente como Sexta-feira, toda a gente fica parada a olhar para mim a ver se tenho um sábado ou um domingo na manga…[risos]. Eu contrario isso. Quero ter sucesso, adaptar-me, mas não me quero repetir. Porque tenho muito consciente a questão do tempo.
Em alguns temas trabalha fragmentos de canções portuguesas (Paulo de Carvalho, Simone de Oliveira) ou cabo-verdiana (Ferro Gaita), o que fortalece uma identidade diversa daquela que seria afirmada se recriasse soul ou funk. Quando parte à procura de um som (sample) para uma canção já vai com uma ideia pré-definida do que deseja?
Depende. No caso dos Ferro Gaita sempre tive vontade de utilizar aquele som. Aí já existia essa ideia pré-definida de o utilizar num tema. No caso da Simone de Oliveira e do Paulo de Carvalho, foi diferente. Aconteceu aquele sinistro [a morte em Dezembro de Bernardo Pinto, mais conhecido por DJ Bernas, amigo e colaborador de Boss AC] e a música foi feita uma semana depois. Foi uma descarga. Vim para estúdio. Estava triste e baralhado. E comecei a escrever. Não tinha batida. Comecei a rabiscar. Estava a ouvir coisas da minha biblioteca de sons e assim que peguei na canção do Paulo de Carvalho as palavras “porque choram os teus olhos” fizeram sentido. E a música saiu de rajada. Não tinha intenção de a usar. Mas com o tempo mudei de ideias. É uma homenagem. É a música mais crua que alguma vez fiz. Foi tudo à primeira. No processo de dúvida se a iria ou não utilizar no disco, a família do Bernas disse-me que ficaria contente se tal acontecesse e aí assumi-a. O mesmo aconteceu com Paulo de Carvalho. Telefonei-lhe, expliquei-lhe e disse-lhe que gostava que ouvisse. Pouco depois telefonou-me de volta dizendo-me que a tinha de a pôr no disco, dando-me a sua bênção, ao mesmo tempo que mostrou satisfação pela nova roupagem e por poder chegar a outra geração. Porque também é isso. Uma vez utilizei um sampler do Vitorino e às tantas um adolescente disse-me que se havia tornado seu fã, depois de ouvir o meu tema, provocando-lhe curiosidade para ir ouvir outras canções do Vitorino.
Foi a primeira vez que lhe morreu alguém de quem era próximo?
Não. O tema A vida (Ela continua) foi o último tema que trabalhei com o DJ Bernas em vida. E não foi feito a pensar nele. É uma reflexão sobre o meu presente. É uma forma de perceber que, realmente, mesmo quando as coisas não correm bem, a vida acaba por continuar. Curiosamente o Bernas adorava esse tema. Até me dizia: “Adoro esta música, parece ter sido escrita para mim.” Essa música, inicialmente, foi construída à volta de um sample que não foi autorizado, mas fiz questão de a retrabalhar. Para além desse tema, houve outro que fizemos em conjunto. Nunca foi finalizado, mas será, e por incrível que pareça o seu nome de código era: morreu. Apesar do nome, não falava tanto de morte, mas mais de renascer. É autobiográfica. Falava de quando as minhas filhas nasceram eu ter sentido que voltei a nascer com elas.
Por vezes generaliza-se e diz-se que no hip-hop existe a inclinação para objectificar a mulher. Curiosamente nas duas baladas onde aborda relações emocionais – Dá-me atenção e Por favor (diz-me) – concentra-se mais nos conflitos do que na erotização das ligações.
No passado nunca tive uma atitude de objectificação da mulher. E agora também não. No tema com a Ella Nor acabamos por abordar um tema bem actual que é essa contradição de utilizarmos a tecnologia, como os telemóveis, que foram feitos para comunicarmos, e que cada vez mais têm o efeito oposto, gerando problemas de comunicação. É como se em vez de juntarem, acabassem por ter o efeito de afastar as pessoas. Quanto aos estereótipos do hip-hop, eles existem mas nunca me revi neles. Talvez por isso seja difícil quando me querem pôr no papel de embaixador ou porta-voz do género. Sinto-me grato pelo meu percurso, mas prefiro falar da minha maneira de estar. Apesar de a minha expressão derivar do hip-hop, há uma série de coisas com as quais não me identifico.
Um dos temas mais estimulantes é Si propi onde tem a colaboração dos Ferro Gaita. Por um lado remete para coisas que já fez no passado, com influências cabo-verdianas, mas o resultado final soa diferente, apontando para correntes modernistas.
Ainda poucas pessoas ouviram esse tema, mas as reacções vão nesse sentido. Não conseguem rotular o que estão a ouvir. Gostam mas não o conseguem situar. Dizem que há elementos africanos do funaná, mas também do rap, do trap ou até do dubstep. É engraçado esse amálgama de ideias. E na verdade foi isso. Nem sei dizer como caracterizaria essa música. Foi uma ideia que já tinha há algum tempo e curiosamente a participação dos Ferro Gaita não se enquadra bem na ideia de colaboração tradicional – os sons são samplados – mas a música foi sendo sempre feita com a bênção e a participação deles, e isso foi importante.
Há uma série de estéticas contemporâneas, como o trap, que acabam por ter pontos de contacto com os primórdios do electro e hip-hop dos anos 80. Você carrega essa memória. Pode encontrar esses pontos de ligação. Isso constituiu uma mais-valia?
Digamos que percebo bem todos esses cruzamentos. O objectivo acaba por ser sempre tocar novos públicos e os que sempre me acompanharam e para isso é necessário conseguir essa abrangência. Sinto-me bem na minha idade, mas não posso, nem quero, ter a atitude de quando tinha 18 anos. Há imensas coisas que deixei de fazer e outras que agora faço e que nunca tinha feito. Sair à noite para mim, hoje, é ir despejar o lixo à rua… [risos]. No meu último álbum, na canção Gajo normal às tantas falo de ir às compras e estar num superfície comercial, na caixa, a pagar, como qualquer pessoa. Há dias estava a fazer isso e uma senhora vira-se para mim: “Afinal, aquilo que você diz na música é mesmo verdade!” Porque me apanhou nas compras a pagar a conta. É isso.
Como é que descreveria um dia normal do Boss AC?
No último mês, acordo, levo as minhas filhas à escola, e depois venho para o estúdio. Noventa por cento das vezes estou sozinho. Os outros dez por cento com pessoas da música. E é isso. Tenho uma relação de amor-ódio com as redes sociais. Por um lado se não estás lá é como se não existisses, mas tento não me expor muito. Aqui também não tenho muita rede o que acaba por não me distrair. Mas também trato de outras coisas porque tenho negócios paralelos – sou sócio do espaço Lisboa ao Vivo e tenho um restaurante. Ao final do dia vou para casa e estou com a família. Oiço pouca rádio e sair para concertos é raro. Mas estou muito atento ao que se vai fazendo. Nestas alturas de disco novo só oiço Boss AC. Gosto de fazê-lo no carro. Sempre tive isso. Acabo as misturas e vou ouvir no carro. E é também no carro que decoro as letras. Quando estou na 2º Circular, no trânsito, as pessoas devem achar que sou maluco. Olham para o lado e lá estou eu dentro do carro a cantar em altos berros as canções!