Para quando perguntarmos o que é a Europa
A pena de morte é importante porque continua a ser, como o foi no século XIX e no século XX, um elemento que nos permite falar com conteúdo de uma identidade europeia.
Há precisamente onze anos e mais uma semana, durante a última Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, celebrava-se em Lisboa a instauração de um Dia Europeu contra a Pena de Morte, uma iniciativa conjunta de uma União Europeia então liderada por portugueses (no Conselho, o primeiro-ministro José Sócrates e o ministro da Justiça Alberto Costa; na Comissão, Durão Barroso), e do Conselho da Europa.
Pode parecer apenas mais um dia internacional, até desnecessário, supérfluo, num espectro europeu alargado que na altura contava apenas com um país que aplicava a pena de morte — o que o excluía do Conselho da Europa —, a Bielorrússia. Mas não foi fácil, por incrível que pareça, assegurar a unanimidade quanto a esta celebração até no âmbito da própria União Europeia.
Um dos seus membros, a Polónia, mostrava-se muito reticente em permitir a criação daquele Dia Europeu, associado ao Dia Mundial, contra a Pena de Morte, 10 de Outubro. Porquê? Quereria a Polónia reinstaurar a pena de morte num futuro próximo — e com isso assegurar para si um estatuto de país pária no quadro europeu? Não seria o caso... Tratava-se de, num quadro político semelhante ao actual, obter ganhos internos em torno de uma ideia de autoridade de Estado e de aparente intransigência face ao desvio e ao crime.
A ideia de não se sujeitar à “agenda liberal” dos demais europeus, como se a pena de morte fosse uma questão “de costumes”, colaboraria, na visão dos seus dirigentes, para a imagem de um governo polaco autónomo e forte, que não se sujeita facilmente ao politicamente correcto — ou sequer ao direito europeu e internacional. E assim a diplomacia e os dirigentes políticos europeus andaram uns meses a tentar resolver a questão polaca.
Claro que a diferença de fundo não era entre defensores da pena de morte e seus detractores. A questão era afinal a mesma de hoje: há quem defenda a Europa, a sua esperança de paz perpétua e o seu património civilizacional comum, mesmo com custos políticos internos nos seus países — e Merkel, diga-se o que se disser sobre ela, é um bom exemplo disso. E há quem use a ideia de Europa de uma forma oportunista, focado apenas no curto prazo e em ganhos pessoais e políticos directos e imediatos.
A diferença não é entre conservadores e liberais ou socialistas. Não é entre pró-emigração ou refugiados e contra. A diferença substantiva é entre quem vê genuinamente a integração europeia como uma forma política de futuro e quem, fingidor de ocasião, sempre contou com o seu possível falhanço e não se coíbe sequer de aproveitar as suas vantagens mais directas enquanto se prepara ou conspira para o seu fim.
A pena de morte é importante porque continua a ser, como o foi no século XIX e no século XX, um elemento que nos permite falar com conteúdo de uma identidade europeia. Não apenas uma identidade forjada pela História, mas também aquela que é visível nas decisões políticas e nos valores de hoje. Um espaço onde não se admite que um Estado possa decidir sobre a vida ou a morte de alguém. E isso, com mais ou menos reticências polacas ou de outros, será sempre um elemento identitário e um motivo de orgulho.