Lisboa: mitos, manias e a interrupção de um repovoamento em curso

A transformação recente deste assunto num dos temas políticos mais quentes a nível nacional e internacional deve-se à força reivindicativa das classes médias cujas expectativas estão a ser defraudadas.

I. Temas quentes e narrativas revisionistas: a salvação de Lisboa

Quase sempre a popularização de um tema tem manifestações semelhantes: todos têm uma opinião e em regra o maniqueísmo reina. O tema “Lisboa” padece deste problema em modo amplificado. Para além de tocar direta ou indiretamente muita gente, o tema é um campo de batalha ideológico por excelência, da esquerda à direita. Os revisionismos do passado, muitas vezes feitos por desconhecimento e não por dolo, ajudam a legitimar a suposta inevitabilidade de um presente controverso. E aqui há um exemplo especialmente sensível porque suporte de toda a narrativa dos defensores da expansão desregulada das várias dinâmicas que marcam a Lisboa dos nossos dias: a tese de que a cidade estaria a perder população desde os anos 1960 e que as transformações em curso mais não fizeram do que contribuir para a reabilitação de uma cidade em decadência. Embora entre os seguidores desta tese já se reconheça a existência de um problema, de habitação, este é resumido ao mero desajustamento entre a oferta, que é pouca, e a procura, que é muita. Com este argumento arruma-se a questão: à narrativa justificativa da legitimidade do processo, ancorada no passado, junta-se a solução destinada ao futuro – construir mais, mantendo um quadro mínimo de regulação do imobiliário e do turismo.

Acontece que a evolução das cidades, incluindo Lisboa, é um fenómeno um pouco mais complexo. Vamos por pontos.

II. “Decadência” das cidades = acesso à modernidade

É verdade que Lisboa iniciou uma trajetória de perda demográfica nos anos 1960 sobretudo nos centros históricos, mas que se viria a estender a outras zonas mais recentes. Essa tendência terá sido interrompida no fim dos anos 1970 com a vinda dos “retornados”, mas a perda agravar-se-ia nas décadas de 1980 e 1990. A “decadência” dos centros urbanos na segunda metade do século XX afectou muitas cidades e não foi uma especificidade de Lisboa. Filmes como Taxi Driver mostram bem o lado “alternativo” da Manhattan dos anos 1970 e princípios de 1980, à época apenas apreciado por uma pequeníssima elite cultural. Em Lisboa, salvo alguns bairros históricos sobretudo a ocidente, como a Lapa ou a Estrela que sempre se mantiveram como um enclave da alta burguesia, o resto era bastante desvalorizado e, em regra, abrigo de indivíduos de frágil condição socioeconómica. Essa “decadência” corresponde portanto a uma fase da cidade que espelha um primeiro momento de modernização das sociedades coincidente, entre outras coisas, com a generalização do acesso a uma habitação condigna. Ora, as expectativas dessa modernização estavam depositadas na “cidade nova”.

II.1 A periferia não se fez às custas da expulsão da cidade

Um frequente equivoco sobre este processo é o de que o crescimento das periferias se fez às custas da expulsão dos residentes da cidade. Por um lado, o valor da perda demográfica da cidade foi infinitamente inferior ao dos ganhos do conjunto dos restantes concelhos da Área Metropolitana: a esmagadora maioria dos que vieram para a “cidade” estabeleceu-se diretamente na periferia. Mas mesmo para muitas das famílias que fizeram um percurso cidade-periferia o mote foi um trade-off entre os prós e os contras desta opção, enquadrado por uma atmosfera geral de idealização da cidade nova e da propriedade. Entrevistada em 2012, no contexto de uma investigação sobre trajetórias residenciais na AML, esta agente de seguros nascida em 1944 que saiu de Lisboa quando casou exprime bem o mindset dominante no período áureo da cidade moderna: “ninguém gosta de casas do séc. XIX, a não ser que sejam casas de luxo.”

II.2. O povo é sereno, mas não é estúpido: sobre a propriedade  

E termino este ponto sublinhando que é também um equivoco a diabolização da propriedade da habitação, feita habitualmente à esquerda. O aumento da propriedade não é uma especificidade de Portugal nem uma idiossincrasia cultural ou ideológica dos portugueses. Também não é uma instrumentalização das massas, que não são estúpidas, pelo mainstream financeiro e político. Como salienta Piketty, “o desenvolvimento de uma verdadeira ‘classe média patrimonial’ constitui a principal transformação estrutural da distribuição da riqueza nos países desenvolvidos no século XX”. Ora, nas cidades de hoje assiste-se a um círculo vicioso que alarga o universo social das desigualdades, contribuindo, em particular, para o disempowerment das classes médias: o acesso à propriedade é cada vez mais difícil, reduzindo a liberdade de escolha destes segmentos, e remetendo-os para o arrendamento, o qual, por seu turno, concentra as maiores fragilidades. A maior vulnerabilidade dos arrendatários, embora muito mais evidente na atualidade por força das circunstâncias, corresponde porém ao agravamento de uma realidade que já vinha de trás.

III. Adiamento da modernização = retardamento da reabilitação

Face ao exposto, percebe-se que a valorização generalizada dos centros históricos e da reabilitação resulta de uma outra fase da modernidade já marcada por um conjunto de “adquiridos”, o que, em Portugal, só ganha alguma consistência no virar do milénio. Esse “renascimento urbano”, que noutras cidades se consolida na década de 1990, tanto pode ser dinamizado pela oferta –? por políticas públicas e pelo sector privado –, como pela procura. Neste caso, ela é geralmente iniciada por uma nova classe média, “produto” do aumento da escolaridade, que escolhe os centros das cidades por razões económicas (preço das casas) e, não menos importante, por razões culturais: estilos de vida mais cosmopolitas e urbanos, apostados na valorização patrimonial e das identidades locais, em agregados familiares de dimensão inferior à média – indivíduos sós, casais sem filhos (hetero e homossexuais), coabitação e algumas famílias com filhos. Estes indivíduos menosprezam o “subúrbio”. Em suma, o retardamento da modernização portuguesa teve várias consequências e uma delas foi o adiamento da descoberta dos centros históricos e da valorização da reabilitação tanto do lado da oferta, como da procura.

IV. Anos 2000, início da recuperação: uma andorinha faz mesmo a primavera

Por cá, este processo surge na primeira década do século XXI, mas numa escala reduzida e aparentemente inexistente. O reconhecimento político da importância da reabilitação é já consensual neste período, embora sem grandes efeitos práticos. Por outro lado, o amortecimento do sector imobiliário nacional é anterior à crise e data de 2002. A promoção privada de habitação cai a partir dessa data, diluindo a relevância da reabilitação que, muito timidamente, começa a crescer logo no arranque do milénio.

Ao nível da população, da procura, a primeira década revela já uma Lisboa diferente como o provam os Censos de 2011, única fonte credível a este respeito. Na realidade, é nessa década que se altera a tendência iniciada nos anos 1960. Sublinho dois indicadores quase sempre ignorados, mas fundamentais: 1) a taxa de variação das famílias entre 2001 e 2011; 2) e a comparação entre a variação da população no período em análise (2001-2011) e a mesma na década anterior (1991-2001).

Relativamente a Lisboa, embora ainda existente, a perda de população foi muitíssimo menor entre 2001 e 2011 (-3%) do que a registada na década anterior (-14,8%). Ou seja, nos anos 1990, a cidade perdeu quase 99 mil residentes, mais do quíntuplo da década seguinte, cerca de 17 mil. Mas mais importante é o crescimento de 4% das famílias residentes na cidade na sequência do aumento das de menor dimensão, 19% de agregados de uma pessoa e 9,3% de agregados com duas. Este crescimento verificou-se, com diferentes intensidades, em 42% das antigas freguesias da cidade.

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Olhando agora só para o centro histórico, para as freguesias mais afectadas pelas transformações em curso (Santa Maria Maior, Misericórdia, Santo António, Arroios, São Vicente e Estrela), apenas duas registaram, no conjunto das suas antigas freguesias, uma perda simultânea de famílias e população: Misericórdia e Santo António. Ironicamente, Santa Maria Maior, o “epicentro” das atuais mudanças, é, no centro histórico, aquela com maiores evidências de recuperação na década passada: das suas 12 antigas freguesias, três tiveram aumentos simultâneos de população e famílias (Santa Justa na Baixa, Mártires no Chiado e Socorro na Mouraria) e outras três de um destes indicadores (São Miguel em Alfama e Madalena e São Nicolau, ambas na Baixa). Explorando o perfil dos residentes destas seis freguesias, indicativo do próprio perfil dos novos residentes, destacavam-se dois grupos diferentes ocupando zonas distintas. No Rossio-Praça da Figueira-Martim Moniz e parte da Mouraria (Santa Justa e Socorro), um grupo, com maior visibilidade e predominante em toda a freguesia, constituído por empregados e trabalhadores do comércio e serviços, com relevância de imigrantes. Já mais perto do rio, nas margens do coração da Baixa Pombalina, no Chiado (Mártires) e na Madalena, temos um segundo grupo que agrega as profissões intelectuais e científicas, sintomático das tais classes médias que, na sua imensa heterogeneidade, são os grandes reivindicadores da cidade atual.

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V. Take back the city: a militância das classes médias 

É verdade que se olharmos para os valores absolutos destas dinâmicas estamos a falar de números reduzidos. Mas aqui uma andorinha faz mesmo a primavera. O que está em causa é a interrupção de um processo revelador da transformação da sociedade portuguesa, da sua modernização. Um processo que, como é natural, na sua fase inicial, teve uma expressão minoritária. Contudo, o seu crescimento seria, mais do que previsível, inevitável. Dir-me-ão: outras inevitabilidades mais poderosas se sobrepuseram e as coisas mudaram. Sim, é irrealista pensar que a evolução de Lisboa se poderia ter feito como se... como se o mundo não existisse e o tempo passasse sem que as circunstâncias mudassem, como se não tivesse havido uma crise, como se o turismo de massas não tivesse aumentado, como se o investimento financeiro fosse pouco poderoso, etc., etc., etc. Mas uma coisa é certa: a transformação recente deste assunto num dos temas políticos mais quentes a nível nacional e internacional deve-se à força reivindicativa destas classes médias cujas expectativas, primeiro no trabalho e agora na vivência urbana, estão a ser defraudadas. À inevitabilidade da financeirização global do investimento imobiliário nas cidades contrapõe-se a inevitabilidade do crescimento da militância urbana entre estas classes médias. Temos um problema!

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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