“E agora?” Um ano sem casa
Associações de vítimas dos incêndios de 15 de Outubro falam em atrasos na reconstrução das primeiras habitações. CCDRC responde com a necessidade de cumprir os procedimentos legais.
Stefanie Köhne tem 53 anos e trocou a Alemanha por Portugal há duas décadas. Vivia nas imediações da aldeia das Luadas, em Arganil, e tal como aconteceu com mais de cerca de 1500 casas, a sua ardeu no incêndio de 15 de Outubro de 2017. Um ano depois, as duas estruturas de xisto ao fundo do Vale da Teixugueira continuam em ruína.
“E agora? Não sei, não sei... Não faço ideia”. A pergunta é colocada e respondida por Stefanie. Do antigo celeiro onde trabalhava na manufactura de produtos em feltro pouco resta. Das casas em pedra sobram paredes danificadas, telhados abatidos e um painel fotovoltaico inutilizado.
Também Luís Vicente, de 42 anos, espera que a casa onde vivia com a mãe, de 80, seja reerguida. A casa faz parte de uma série de três casas seguidas que arderam numa rua de Valongo, concelho de Tábua. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) tem a obra sinalizada como estando em execução e há uma placa do consórcio responsável na vedação do terreno onde estava a casa de dois pisos em granito.
Contudo, Luís Vicente, um operário da construção civil que por ironia está a trabalhar na reconstrução das casas dos outros, explica que a única movimentação que ali teve lugar foi a demolição do que restava da casa, ficando algumas paredes, há cerca de três meses. Enquanto espera que mais aconteça, a mãe fica em casa da irmã e Luís vive numa casa auxiliado pela Junta de Freguesia.
Dos 828 apoios aprovados para reconstrução ou apetrechamento de habitações em 32 concelhos afectados pelos incêndios, há 285 intervenções concluídas no âmbito do Programa de Apoio à Reconstrução de Habitação Permanente (PARHP). Todavia, das 366 em que o dono de obra é a CCDRC, há apenas 36 intervenções concluídas. Número que a entidade presidida por Ana Abrunhosa justifica ao PÚBLICO com a necessidade de “assegurar o maior rigor e transparência possíveis em todo o processo”. Alguns dos procedimentos “têm prazos legais inultrapassáveis”, acrescenta ainda a resposta. A CCDRC informa ainda que estão ainda em análise cinco pedidos de apoio em dinheiro “apresentados recentemente”.
No caso de Stefanie Köhne, a entidade pública refere que a obra ainda não está iniciada, o que é possível constatar no local. Estão a ser feitas “alterações ao projecto, com soluções que facilitem a execução dos trabalhos, uma vez que se trata de uma habitação localizada numa zona de muito difícil acesso”.
Entre “algum atraso” e “descontrolo”
Há uma diferença de tom na avaliação que as duas associações de vítimas fazem da reconstrução das casas. Luís Lagos, da Associação de Vítimas do Maior Incêndio de Sempre em Portugal (AVMISP), entende que “há algum atraso” no processo e que a reconstrução seria “mais célere se tivesse sido entregue na sua totalidade às famílias”.
Nuno Pereira, do Movimento Associativo de Apoio às Vítimas do Incêndio de Midões (MAAVIM), fala num “descontrolo total”, dizendo que as reconstruções que foram concluídas “estão a cargo das pessoas”. Entende também que, se os processos tivessem sido entregues às autarquias locais, “já tínhamos as casas reconstruídas”.
“Um ano já é algum tempo, embora saibamos que uma casa arde em cinco minutos e demore tempo a reconstruir”, avalia Luís Lagos. E prossegue: “É de uma dureza enorme as pessoas não poderem entrar nas suas casas”. A partir daqui, considera que é importante fazer pressão sobre as entidades públicas para “chegarmos ao Natal com a maioria das famílias nas casas”.
Nuno Pereira lembra que as pessoas vão entrar no segundo Inverno sem verem a sua situação resolvida. Aponta também para os casos de quem ficou sem apoio: “preocupa-nos aquelas pessoas que ainda não vêm uma luz ao fundo do túnel”.
A CCDRC chumbou 477 pedidos de apoio no âmbito do PARHP, na maioria por questões relacionadas com a titularidade do imóvel, de uso como habitação permanente, de legalidade urbanística ou desistências.
Há casos em que a prova de uso permanente do imóvel é complexa, nomeadamente nas comunidades de portugueses e estrangeiros que se fixam em locais isolados, com casas antigas e não registadas, montando próprio sistema de captação de água e fazendo uso da energia solar e estando assim impossibilitados de apresentar facturas.
Depois do incêndio, Valentijn Huysentruyt e Anouk Weyne começaram a reconstruir a casa no Vale da Teixugueira por meios próprios. A antiga estrutura de xisto já lá estava quando compraram o terreno e não estava registada como primeira habitação antes de 15 de Outubro de 2017. Como tal, o casal belga viu-se de fora dos apoios. Têm estado a arrendar uma outra casa enquanto trabalham na reconstrução desta e na recuperação de um terreno de 2,5 hectares.
Também a casa de Caroline Rodgers ficou destruída. A escocesa que mora às portas da aldeia da Benfeita, Arganil, refere que, quando comprou o terreno, o edifício não estava registado. Vive neste momento numa roulotte com um toldo anexo, ao lado da carcaça de xisto. No processo de apoio, queixa-se da burocracia e de falta de informação. Ainda não perdeu a esperança de receber auxílio para reconstruir a casa, tendo contactado uma advogada.
Tanto no caso do casal belga como no de Caroline, a CCDRC informou que “não foi feita prova do uso permanente do imóvel”. A mesma fonte informa que as reuniões que foi mantendo na região com autoridades locais serviam para “esclarecer a comunidade relativamente às regras de apoio”, uma vez que “muitas das famílias não tinham as habitações registadas em seu nome nem tinham as construções licenciadas”.
O presidente da Câmara Municipal de Arganil, Luís Paulo Costa, explica que, em alguns casos, as casas “não estão ilegais”, apenas “a sua documentação não está tratada”. No entanto, aponta que dois terços dos imóveis analisados “não eram passíveis de regularizar”.
Carlos Cerqueira, dono de um armazém de materiais de construção em Coja, Arganil, refere que 70% do volume de facturação “deve-se a estrangeiros que vivem aqui na zona”. Já assim era antes de Outubro de 2017, conta o proprietário da Cercol que ali faz negócio há 30 anos. Notou também um aumento na venda de materiais de construção, entre 15% a 20%. Perante as dificuldades de alguns dos clientes, tem sido frequente abrir linhas de crédito. Sem a venda a fiado “seria mais difícil para eles”, avalia.
O ano que passou foi duro. Para além de ter ficado sem o atelier, parte dos produtos que Steffi Köhne produzia eram escoados para um turismo de natureza que foi escasso na última época. Observando a paisagem ainda muito marcada pela devastação, não é difícil de perceber porquê. Apesar da indefinição e das dificuldades, deixar o país não é uma opção para a artesã: “Vivo aqui há 20 anos. O meu filho cresceu aqui. Esta é a minha vida”.