O meu pedaço de tristeza
Há uma sucessão de erros políticos enormes que conduziram a Bolsonaro. Para quem não viu, a série brasileira O Mecanismo é imprescindível para perceber uma sociedade onde a corrupção leva tudo à frente. É um nó cego. Uma angústia.
1. Vamos deixando ao longo da vida pequenos pedaços de nós em alguns cantos do mundo. Tenho vários por aí espalhados, que a vida já vai longa. Um deles ficou no Brasil. Por razões várias. Visitei o país em duas magníficas e irrepetíveis visitas oficiais de Mário Soares, nos finais dos anos 1980, já com a democracia restaurada. Como era seu hábito, além de um profundo conhecimento pessoal da realidade brasileira, Soares quis ir a quase toda a parte. Estivemos no Maranhão, na Amazónia, no Recife, em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia. Foi numa dessas viagens que conheci o seu amigo Fernando Henrique Cardoso, então o mago das Finanças que haveria de resolver o problema maior da economia brasileira (e dos pobres): a hiperinflação. Entrevistei-o depois várias vezes, já tinha saído do Planalto. Sempre a mesma vasta cultura, a mesma lucidez, a mesma moderação, que fizeram dele o Presidente que criou as condições sem as quais Lula muito dificilmente teria sido eleito. Foi ele que me disse, nas vésperas da segunda eleição de Lula da Silva já em pleno “mensalão”, a frase que foi título de uma dessas entrevistas. “É preciso evitar que a falta de liderança de Lula não destrua o símbolo.” Foi ele também que me explicou com três palavras que Lula não pertencia à velha esquerda latino-americana: não era antiamericano, não era antiglobalização e não era anticapitalista. Numa frase: era igualmente aplaudido no Fórum Económico de Davos e no Fórum Social de Porto Alegre. A transmissão de poderes, no Planalto, no dia 1 de Janeiro de 2003, foi uma cerimónia comovente. Matias Spektor (Fundação Getúlio Vargas) escreveu um livrinho, Dezoito Dias, no qual descreve como os dois colaboraram durante a transição de forma exemplar e como F.H.C. tratou de tranquilizar Washington e Nova Iorque sobre a eleição de Lula. O Brasil parecia um país “abençoado por Deus”: um presidente considerado pela Foreign Affairs um dos intelectuais mais importantes do século XX; um operário metalúrgico, pobre e com poucos estudos, com a capacidade de entender o mundo em que vivia e de prometer aos brasileiros aquilo a que tinham direito — “três refeições por dia”. A nostalgia deste tempo aumenta ao ritmo a que Bolsonaro se aproxima do Palácio do Planalto.
2. Fui algumas vezes ao Brasil, sobretudo a São Paulo, participar em conferências organizadas na altura pelo IEEI. Fui aprendendo. Depois, vi (e vivi) o Brasil, entre 2010 e 2014, precisamente na sua melhor época, quando tudo parecia finalmente possível, mesmo descontando o exagero da elite do PT (que anunciava demasiado cedo e com demasiada gula o declínio do Ocidente e a emergência do Sul, onde os mais altos voos estavam destinados ao Brasil). Duas das minhas netas nasceram no Rio. Têm tripla nacionalidade: brasileira, britânica e portuguesa. Pareciam ter nascido para um mundo em que “a humanidade, citando Obama, seria finalmente comum”, independentemente do sítio onde se nascesse. No Mundial de futebol, a questão era saber por quem torcer. Por Portugal? Pela Inglaterra? O melhor era mesmo torcer pelo Brasil. Ainda hoje o português lhes sai com sotaque brasileiro. Não é problema. Passeei nas ruas do Rio (na Zona Sul, naturalmente) com a mesma descontracção com que passeio em Lisboa. Vi a nova classe média baixa, que emergiu da pobreza durante os governos de Lula (mais de 30 milhões de pessoas) alimentar expectativas como nunca antes tinha tido. Vi ainda, em 2014, as grandes manifestações nas quais exigia o que deveria vir a seguir: melhor educação pública; melhor saúde pública. Dilma e o PT não perceberam a mensagem, acusando a oposição de estar por trás delas. Era muito mais do que isso. Mas vi também as classes média e média alta, muito reduzidas em termos de percentagem, viver cada vez melhor, apesar de Lula. Nela se incluem os funcionários públicos com diploma universitário, os juízes e outros magistrados, os jornalistas, as profissões liberais, os pequenos e médios empresários. O luxo em que vivem não tem nada que ver com as classes médias europeia ou americana, que são largamente maioritárias. Para um espírito europeu, é quase impossível acreditar (só estando lá) que essa classe média alta, mesmo a intelectualmente mais preparada, se queixa do novo regime legal das empregadas domésticas, que encareceu o seu trabalho. Como dizia a minha filha, o seu pequeno apartamento de Londres cabia no espaço reservado à cozinha e aos quartos das empregadas do seu apartamento do Rio. Vi agora a empregada da minha filha no Rio, da qual ficou amiga, teimar com ela durante uma semana que ia votar Bolsonaro, até ter sido dissuadida no último minuto. Tinha votado em Lula. “E agora?” — pergunta ela. Recusa-se a votar no PT, porque pensa que foi traída por ele, incluindo por Lula que, por alguma razão, está na cadeia. O PT prometeu combater a corrupção e fez como os outros. Prometeu acabar com violência e fez como os outros. Prometeu uma vida melhor e ela vive as desesperantes consequências da maior crise económica brasileira das últimas décadas.
3. Do alto do nosso conforto europeu, não é fácil descermos à realidade em que vive uma grande maioria do eleitorado brasileiro. Não conhecemos o grau de violência que regressou ao Rio. Não sabemos o que é andar à procura de emprego e não arranjar. Não sabemos o que é voltar a temer pelo futuro dos filhos. Não é fácil explicar que há um valor supremo que é a democracia, que é a forma mais segura de combater a violência e de denunciar a corrupção. É demasiado abstracto. A esquerda europeia, com os seus sonhos e os seus mitos, não perde uma visita às favelas, mas vem dormir à Zona Sul. Na velha, civilizada, próspera e democrática Europa vemos hoje governantes prometer que vão varrer “os ilegais casa a casa, rua a rua.” Lemos reportagens com descrições inacreditáveis sobre as condições em que estão detidos alguns refugiados ainda à espera de asilo ou a quem o asilo não foi concedido, sem precisarmos de ir a Lesbos. O Guardian descrevia um desses locais inadmissíveis numa das suas últimas edições. O Governo britânico não desmentiu. Disse que ia ver. Vemos medrar em directo uma vaga de partidos populistas e nacionalistas na Europa, não à custa da pobreza das pessoas, como no Brasil, mas apenas à custa das suas incertezas sobre o futuro e ao seu medo dos imigrantes, reais ou imaginários, que olham como uma ameaça à sua cultura. Apenas querem ter a certeza de que vão continuar a viver tão bem.
4. Há uma sucessão de erros políticos enormes que conduziram a Bolsonaro. O Governo de Lula não esperou um mês para atacar desenfreadamente os governos de F.H.C. O PSDB (de F.H.C.) foi acumulando a frustração de ter falhado a eleição de Aécio (2014) por uma unha negra, embarcando no impeachment de Dilma, em 2016, por razão nenhuma, a não ser as suas escolhas políticas, mesmo que eventualmente desastradas. Vimos a operação Lava-Jato prender em público e em directo políticos corruptos e empresários corruptores numa dimensão nunca vista, provavelmente nem lá, nem em parte nenhuma. Para quem não viu, a série brasileira O Mecanismo é imprescindível para perceber uma sociedade em que a corrupção vai do biscate à emissão de um passaporte até à maior das empresas brasileiras, levando tudo à frente. É um nó cego. Uma angústia. Feito o desabafo, para quem queira entender o que está em jogo no próximo dia 28, basta ler na edição de ontem a coluna de Jorge Almeida Fernandes: “O projecto autoritário de Bolsonaro: uma hipótese de trabalho.”